O presidente é negro. O premiê é gay
Alexandre Vidal Porto
Não se transacionam direitos humanos em arranjos políticos. É esse o espírito da Constituição
Violações de direitos humanos ocorrem em todas as partes do planeta. Ninguém está imune. Os abusos acontecem sob qualquer tipo de governo, em qualquer país, sem distinção. A única diferença é o tratamento que se dá às violações.
Os abusos contra os direitos humanos, no entanto, podem servir para dar ímpeto ao aperfeiçoamento dos regimes de proteção.
O fenômeno dos "desaparecidos" em ditaduras latino-americanas revelou a necessidade de legislação contra detenções arbitrárias; o horror do Holocausto mostrou a importância de se prevenir a prática do genocídio; e a segregação do apartheid evidenciou a urgência de se promover a igualdade racial.
Da mesma forma, a escolha de um radical religioso, que vocifera publicamente contra negros e homossexuais, para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados deveria servir de lição e ajudar o fortalecimento da promoção e defesa dos direitos humanos no Brasil.
Como nenhum outro episódio da crônica política recente, a eleição de Marco Feliciano (PSC-SP) deixou clara a luta covarde que as minorias têm de travar para garantir o debate de seus direitos no Congresso.
Sua escolha alertou, também, para o processo de apropriação do aparelho estatal para fins de proselitismo religioso fundamentalista.
Sobretudo, mostrou a falta de compromisso dos parlamentares brasileiros com a finalidade última da democracia representativa, que é governar para todos, com justiça e contemplando a felicidade individual de cada um.
Em sua radicalidade, o descaso da Câmara dos Deputados com o objetivo final da atividade legislativa acabou energizando a militância e a sociedade civil organizada.
Mais do que isso, estimulou a participação política de centenas de milhares de cidadãos, que expressaram seu descontentamento nas mídias sociais. O recado ao governo é claro: grande parte de nossa população não aceita barganhas políticas às custas de princípios democráticos fundamentais.
Do mesmo modo que não se atingem as partes baixas dos competidores numa luta de boxe, não se transacionam direitos humanos em arranjos políticos. É esse o espírito de nossa Constituição.
O que aconteceu na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dá a dimensão clara dos problemas que a consolidação dos direitos humanos enfrenta em países de herança político-institucional autoritária, religiosa e paternalista. Ao governo, o episódio deve servir como alerta. Aos cidadãos que querem um Brasil mais inclusivo e justo, deve servir como lição e estímulo.
Os negros e os homossexuais vilificados no discurso do deputado Feliciano são vítimas. Sofrem discriminação diária no Brasil. Mas suas lutas prosperam em outros países.
Enquanto o pastor pregava racismo, o povo norte-americano elegia um presidente negro. Enquanto desqualificava os homossexuais, os belgas escolhiam um primeiro-ministro abertamente gay. E tudo bem. Não aconteceu nada. Ninguém acabou no inferno por causa disso.
ALEXANDRE VIDAL PORTO é escritor e diplomata. Este artigo reflete apenas as opiniões do autor.
*Mariadapenhaneles
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