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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, março 07, 2013

Da folha corrida do Vaticano


 

O banqueiro de Deus

"Sabemos que a Máfia é cliente do banco do Vaticano... eu soube e preciso de confirmação sobre a morte do banqueiro do Vaticano, me disseram que ele se enforcou num poste de luz onde não se encontrou escada para chegar naquela altura... me contaram que o mordomo que vazou uma porção de documentos que formaram o corpo de um livro...não vi o suicida pendurado, não li o livro.. não tenho provas do que escrevo..."

Ninguém tem provas. Há muitos factos ("factos", não teorias), mas ligar os pontinhos para obter um quadro geral claro e inequívoco, este é outro discurso.
O banqueiro é Roberto Calvi. Depois temos o Ior, as passagens obscuras de dinheiro, as lutas de poder. Algumas décadas mais tarde, a história do "banqueiro de Deus", como Calvi foi definido, ainda não acabou. Trinta anos depois, desde aquele 18 de Junho de 1982, quando foi encontrado morto debaixo da ponte dos Frades Negros, em Londres, com nos bolsos pedras e 15 mil Dólares. Trinta anos e uma série de decisões judiciais, todas com um único sentido: Calvi foi morto. O assassino? Os mandantes? Desconhecidos.
É uma história complexa, entre cujos protagonistas encontramos Flavio Carboni (Maçonaria), Pippo Caló (mafioso), Enrico de Pedis (criminalidade organizada de Roma), Paul Marcinkus (Vaticano). E um banco, claro. Aliás, dois: o Ior e o Banco Ambrosiano.
O banqueiro de Deus
Mas quem era Roberto Calvi?
A história dele é "normal", pelo menos até um certo ponto. Universidade, dirigente do Grupo Imprensa e Propaganda durante o Fascismo, voluntário na Segunda Guerra Mundial.
Acabado o conflito, entra no Banco Comercial e, dois anos depois, no Banco Ambrosiano, uma instituição muito ligada ao Ior, o Istituto Opere Religiose que gere o património do Vaticano.
Calvi é inteligente, conhece o próprio trabalho, não tarda a dar nas vistas. Entra em contacto com a Maçonaria, com o mundo financeiro italiano e sul-americano, com o crime organizado que precisa reciclar o dinheiro, com os políticos. Em 1971 é director geral do banco, em 1974 é vice-presidente, em 1975 presidente. A subida dele não conhece paragens.
Contacta Michele Sindona, outro homem ligado ao dinheiro e aos bancos, com o qual entra em negócios. A coisa expande-se: funda uma rede de sociedades-fantasma com o Ior em vários paraísos fiscais, adquire bancos estrangeiros, com o arcebispo Marcinkus abre a Cisalpine Overseas, nas ilhas Bahamas. Sob a direcção do Vaticano financia Países e organizações na Europa (Solidarnść na Polónia) e na América do Sul (Contras) para travar a penetração das ideologias filo-marxistas.
É um pequeno-grande império em continua expansão, que tem no dinheiro da Santa Sé o motor.
Depois algo acontece: os investigadores italianos abrem o Vaso de Pandora que é a Maçonaria ilegal (Loggia P2). O Banco Ambrosiano está mergulhado nela, a instituição é abalada, no horizonte uma falência de biliões. Calvi é preso, procura apoio no Ior e no Vaticano, mas encontra as portas fechadas. Percebe que foi abandonado, o nome dele ocupa demasiado espaço nos diários, tornou-se dispensável.  
Em liberdade provisória, à espera do julgamento, entra em contato com o financeiro Flavio Carboni, do qual é conhecida a proximidade com a Mafia (Pippo Calo é o referente dele). É Carboni a figura-chave dos últimos dias de Calvi: em 9 de Junho de 1982, o banqueiro deixa a cidade dele, Milano, e em Roma reúne-se com Carboni. Em seguida, muda-se para Veneza, Trieste, passando pela Iugoslávia e a Áustria. Encontra novamente Carboni na fronteira com a Suíça e parte para Londres. É o 15 de Junho de 1982. Três dias depois, é encontrado pendurado em Blackfriars Brigde, a Ponte dos Frades Negros.
É espalhada a ideia do suicídio, mas logo é claro que algo não bate certo. Seis meses depois, a Corte Suprema do Reino Unido chumba as conclusões do inquérito inicial e o relativo juiz é acusado de irregularidades. É um caso de homicídio premeditado.
O mesmo acontece em Italia. O caso, inicialmente arquivado como suicídio, é aberto outra vez. E tudo fica ainda mais confuso. Porque Calvi foi morto? De acordo com a acusação, a intençaõ foi "castigá-lo por ter tomado posse de grandes quantidades de dinheiro pertencentes a organizações criminosas". Cosa Nostra e Camorra, ao que parece. Mas não é tão simples.
No julgamento de 2010, o procurador afirma que "a supressão do banqueiro teria garantido a impunidade de Carboni perante os crimes de reciclagem em que estava envolvido".
Em Novembro de 2011, a Suprema Corte diz "não" a uma reabertura do caso. Essencialmente porque, como consta das razões, contra os réus há falta de pistas e de evidências. Mas no mesmo relatório dois pontos ficam estabelecidos: Calvi foi assassinado e a Mafia "empregava o Banco Ambrosiano e o Ior como um veículo para enormes operações de lavagem de dinheiro".
Esta passagem é fundamental: a justiça italiana não consegue (nem irá conseguir nos anos seguintes) apresentar as provas que possam individuar os culpados, mas os vários julgamentos estabeleceram além de qualquer dúvida que existia um fio vermelho que ligava Calvi, o banco dele, o Vaticano e a Máfia. O fio é o dinheiro.
Tinha afirmado Calvi: "O Banco Ambrosiano não é meu, eu apenas sou o servidor de alguém".
Quem? A dúvida permanece. Mas a estrada dos processos de Calvi cruza aquela do Vaticano uma segunda vez. E aqui a história fica ainda mais complexa e mórbida.
O meio é a Banda della Magliana, uma organização criminosa de Roma muita activa nas décadas dos anos '80. O alvo é Emanuela Orlandi, rapariga de 15 anos desaparecida em 1983. As suspeitas envolvem o arcebispo Marcinkus e as ligações dele com a Banda della Magliana.
Tinha sido a mesma Banda a fornecer o passaporte falso encontrado num dos bolsos de Calvi. E Carboni é investigado, pois o seu carro teria sido utilizado para transportar o corpo sem vida da jovem Orlandi. O mandante? Marcinkus. Os mesmos protagonistas do caso Calvi, assassinado um ano antes.
O caso Orlandi
Sabrina Minardi, namorada do criminoso Enrico De Pedis, em 2008 revela que Emanuela Orlandi tinha sido raptada "em nome do arcebispo Marcinkus, deus ex machina do Ior". A Santa Sé responde às acusações, consideradas "infundadas, ultrajantes, duma testemunha de valor muito duvidoso".
O movente? Dinheiro. Marcinkus é acusado de pertencer a Maçonaria, de ter entrado em conflito com o então patriarca de Venezia, Albino Luciani, sobre a venda das acções do Banco Ambrosiano ainda na posse do Ior. Luciani torna-se Papa João Paulo I  e morre um mês mais tarde. Calvi, como sabemos, será enforcado debaixo duma ponte em Londres, no mesmo dia em que uma secretária dele, Graziella Corrocher, voa para fora de uma janela em Milano. Marcinkus, pesadamente envolvido no crack do Ambrosiano, somente através do passaporte diplomático consegue não ser preso.
Voltando ao testemunho da Minardi, esta fala duma suposta prisão num elegante edifício de Torvajanica (Roma), onde Emanuela Orlandi teria sido fechada antes de ser morta e atirada para um misturador de cimento.
Os serviços secretos italianos analisam as mensagens e os telefonemas recebidos pela família da Orlandi após o desaparecimento: num total de 34 comunicações, 16 estão relacionadas com uma pessoa com profundo conhecimento do latim (melhor do que o italiano), provavelmente de cultura anglo-saxónica, um elevado nível cultural e invulgares conhecimentos do ambiente eclesiástico de Roma.
A Minardi, em passado mulher de Calvi também, fala duma passagem secreta, que ligava a prisão da Orlandi com outra zona de Roma, perto do Hospital San Camillo. Passagem que foi de facto descoberta em 2008. O Hospital San Camillo fica no bairro do Gianicolense, onde há também sede o Grande Oriente Italiano (Maçonaria). Menos dum quilometro e temos os muros da Cidade do Vaticano.
O movente? Desconhecido: a ideia é que o rapto foi uma maneira de enviar um sinal, um aviso. De quem e para quem? Só suspeitas.
E a história complica-se mais uma vez: em 1990, o homem da Minardi, De Pedis, é morto. Fala-se dum ajuste de contas no interior da Banda da Magliana, o que pode ser verdade: mas algo não bate certo.
O Alto Comissariado pela Luta contra a Criminalidade estava na posse dum relatório pormenorizado no qual era anunciado o assassinato do De Pedis, com as modalidades que depois teriam sido efectivamente seguidas: eis a sombra dos serviços secretos.
E, uma vez morto, De Pedis é sepultado na Basílica de Sant'Apollinare, sede da Pontificia Universitá della Santa Croce: a autorização é do Vaticano, quem assina é o cardeal Ugo Poletti. Monsenhor Piero Vergani, numa carta de Março de 1990, afirma que De Pedis tinha sido um "benfeitor" com os pobres que frequentavam a basílica.
Mais tarde, dois componentes da Banda della Magliana, Maurizio Abbatino e Antonio Mancino, começam a colaborar com a Justiça, permitindo acabar com a organização. E confirmam: Emanuela Orlandi tinha sido um trabalho deles, no âmbito dos relacionamentos entre a Banda e o Vaticano.
O Ior e Marcinkus
Marcinkus é o "grande nome" que paira sobre o Ior da época. Não é possível falar da instituição sem falar do homem.
Americano de origens lituanas, Paul Marcinkus apresenta uma carreira de primeiro plano. Mas não poucas sombras também.
A revista OP - Osservatore Politico de Mino Pecorelli (entretanto obviamente assassinato), em 1978 publica uma investigação da qual resulta que Marcinkus fazia parte da Maçonaria, desde o ano 1967, com o número de matrícula 43/649.
E não era só ele: Jean-Marie Villot (Cardeal Secretário de Estado), Agostino Casaroli (Ministério dos Negócios Estrangeiros do Vaticano), Pasquale Macchi (secretário de Paulo VI), Donato De Bois (Ior), o cardeal Ugo Poletti, don Virgilio Levi (Osservatore Romano), Roberto Tuci (director da Rádio Vaticana).
Em 1973, os procuradores do Departamento de Justiça dos Estados Unidos interessam-se em Marcinkus: William Aronwald e Bill Lynch querem explicações acerca dos 950 milhões de Dólares partidos da Máfia de New York e aterrados no Vaticano. Marcinkus não vacila: é amigo de David Matthew Kennedy, da Continental Illinois National Bank e em 1969 ministro de Nixon.
Na altura do crack do Banco Ambrosiano, fica claro o papel de primeiro plano do Ior. Um complicado Risiko bancário, onde não faltam a Maçonaria e a criminalidade organizada internacional também. O Ior excercitava o controle sobre Manic. S.A. (Luxemburgo), Astolfine S.A. (Panamá), Nordeurop Establishment (Liechtenstein), U.T.C. United Trading Corporation (Panamá), Erin S.A (Panamá), Bellatrix S.A (Panamá), Belrosa S.A (Panamá) e Starfield S.A (Panamá): todas sociedades-fantasmas em paraísos fiscais, que tinham desviado biliões de Dólares dos cofres do Banco Ambrosiano.
Mais: segundo as declarações do mafioso Vincenzo Calcara (que os juízes consideraram "credível": acórdão do Tribunal de Roma de 6 de Junho de 2003), Marcinkus era a ligação entre a entidade do Vaticano e a Máfia. Calcara conta também da última viagem e da "entrega" poucos meses antes do atentado contra João Paulo II: 10 biliões de Lire (5 milhões de Euros) com destino a América do Sul, entregues num encontro em casa do notário Francesco Albano (da Ordem dos Cavalheiros do Santo Sepulcro, notário pessoal do político Giulio Andreotti e dos boss mafiosos Luciano Liggio e Frank Coppola).
Em 1982 o governo italiano decreta o desaparecimento do Banco Ambrosiano e o Ministro do Tesouro, Beniamino Andreatta, denuncia no Parlamento as responsabilidades do Vaticano e do Marcinkus.
Este último é arguido em 1987 com a acusação de bancarrota intencional, a magistratura italiana emite uma orem de prisão, mas o pedido de extradição é chumbado com base no artigo 11 do Tratado do Latrão.
Entretanto (1981) João Paulo II tinha nomeado Marcinkus presidente da Pontifícia Comissão do Estado da Cidade do Vaticano, cargo que manteve até 1990. Atingidos os 75 anos, volta para os Estados Unidos, onde morre em 2006.
Mas a vida do Ior continua. Em 1993 a operação da magistratura Mani Pulite atesta que a instituição tinha funcionado como trâmite para a entrega do dinheiro Enimont, um caso de corrupção que envolveu o Partito Socialista e a Democrazia Cristiana (este último historicamente próximo do Vaticano).
Em 2012 é a vez de Vatileaks: há uma fuga de documentos reservados da Santa Sé, documentos que comprovam as lutas internas e o envolvimento na reciclagem de dinheiro por parte do Vaticano. Entre os documentos mais espantosos, a previsão da morte do Papa Bento XVI no prazo de um ano.
Os outros
O sócio de Calvi, Sindona? Julgado culpado por ter ordenado o homicídio do advogado Ambrosoli (que tinha observado inquietantes irregularidades nas contas do Banco Ambrosiano já em 1979), é preso na prisão de Voghera e morto com um café envenenado em 1986.
O mafioso Pippo Caló, capturado em 1985, desconta duas penas de prisão perpétua.
Flavio Carboni entra e sai das prisões italianas. Da última vez foi preso em 2010, com a acusação de reciclagem de dinheiro. Um vício antigo, ao que parece.
Emanuela Orlandi continua desaparecida.
O Ior continua em funcionamento.
Provas? Não há. E talvez nem sejam precisas.
Ipse dixit.
Fontes: AgoraVox, Loggia P2, Wikipedia (versão italiana), Polisblog, La Repubblica
*GilsonSampaio

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