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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, setembro 21, 2013

Colírios, isqueiros e inspiração


A temática das drogas, de forma cifrada ou explícita, faz parte de letras e canções brasileiras há décadas. Relembre algumas das obras dessa longa história 
A canção “Chico Brito”, composta por Wilson Baptista e celebrizada na voz de Dircinha Batista (na foto junto com a irmã, Linda), foi regravada por Paulinho da Viola
na década de 1970
Lá vem Chico Brito descendo o morro na mão do Peçanha/ é mais um processo, é mais uma façanha/ o Chico Brito fez do baralho seu melhor esporte/ é valente no morro/ e dizem que fuma uma erva do norte.” Em 1950, a paulista classe média Dircinha Baptista cantava o samba “Chico Brito”, do carioca do morro Wilson Baptista, ousando uma rara menção explícita da música brasileira a uma droga provavelmente ilegal, provavelmente maconha.
Chico Brito era “muito estimado” na favela, mas se encarregava de reproduzir, em confusa primeira pessoa, uma antiga lição de moral: “‘A vida tem seus reveses’/dizia Chico, defendendo teses/ ‘se o homem nasceu bom/ e bom não se conservou/ a culpa é da sociedade que o transformou’.” O indivíduo parecia se confessar passivamente “culpado”, ao mesmo tempo em que brincava (e isso lá é brincadeira?) de atirar a dita “culpa” daquilo que o envergonhava no outro, no próximo, no vizinho, na sociedade, no amorfo.
A canção dos Baptista que não eram parentes voltaria à baila em 1979, na voz de um dos artistas brasileiros mais bem-comportados (ao menos publicamente), o carioca Paulinho da Viola. Separadas pelo intervalo de 29 anos, as duas menções à “erva do norte” são soluços que confirmam um oceano de interdições – entre Dircinha e Paulinho, o tabu continuou governando a MPB, ainda mais a partir do advento de mais uma ditadura civil- militar no País. Embora a intoxicação tenha sido sempre um combustível da criação musical, continuou praticamente impossível citar o tema sem subterfúgios.
É óbvio que não iriam ser os generais-presidentes a liberalizar os costumes e permitir que a maconha (menos ainda outras drogas) soprasse solta pela boca da juventude. O rock em versão tropical e a jovem guarda passaram praticamente batidos pela questão – ou não, se considerarmos “É proibido fumar” (1964), de Roberto Carlos, como uma guimba largada à beira do caminho: “É proibido fumar/ diz o aviso que eu li/ é proibido fumar/ pois o fogo pode pegar/ mas nem adianta o aviso olhar/ pois a brasa que agora eu vou mandar/ nem bombeiro pode apagar.”
Por paradoxal que pareça (e seja), o AI-5, de 13 de dezembro de 1968, expulsou artistas mais, digamos, exaltados do Brasil, mas deixou atrás de si um rastilho de distensão simbólica, que daria origem ao hoje tão famoso confronto de bastidores brasilienses entre compositores “subversivos” e censores ultraconservadores.
Um marco de ruptura, aí, se daria na tropicália paulista dos Mutantes, que inscreveram num festival da canção de 1969 um rock viajandão chamado “Ando meio desligado”: “Ando meio desligado/ eu nem sinto meus pés no chão/ olho e não vejo nada/ eu só penso se você me quer.” Repressão à solta, começaríamos a tentar falar dos temas proibidos pela linguagem da brecha, da fresta, da grinfa, da bagana, do baurets.
Os ex-jovem-guardistas (negros) cariocas Golden Boys pegaram a senha dos roqueiros paulistas branquelos e soltaram o “Fumacê” num samba-rock baforado no ano terrivelmente acista e repressivo de 1970: “Ê, ê, ê, fumacê/ ah, ah, ah, fumaçá/ fumaceira tá saindo do lado de lá/ tem alguém queimando coisa/ tá botando pra quebrar.”
O samba-soulman pernambucano (negro) Paulo Diniz testou no mesmo ano o torpor movido a contracultura, em “Ponha um arco-íris na sua moringa”: “Ponha um arco-íris na sua moringa/ fique lelé da cuca num dia de sol/ praia de Ipanema, Simonal sorrindo/ (…) é lúcido, é válido, inserido no contexto”.
O soulman carioca (negro) Tim Maia entrou na onda viajandona via “Chocolate” (1971) e “Cristina” (1970). “Eu só quero chocolate/ não adianta vir com guaraná pra mim/ é chocolate o que eu quero beber/ não quero chá, não quero café, não quero Coca-Cola, me liguei no chocolate”, dizia o primeiro funk, mais inocente impossível. A semente da dúvida seria plantada em 1989, quando a carioca Marisa Monte regravou “Chocolate” inserindo nela alguns cacos, como “não quero pó, não quero rapé, não quero cocaína, me liguei no chocolate” e, ao final, um providencial “é proibido fumar”. Será? “Legalize marijuana”, explicitava Marisa em outro caco, seis anos antes do discurso sem subterfúgio do Planet Hemp – mas vamos com calma.
A outra deixa de Tim, “Cristina”, era ainda mais inocente (ou cifrada): “Vou-me embora agora pra longe/ meu caminho é ida sem volta/ uma estrela amiga me guia/ minha asa presa se solta/ eu vou ver Cristina.” Onde estaria a referência às drogas nesse romantic baião-soul? Reza a lenda que dizer “vou ver Cristina” era eufemismo da turma de Tim para dizer “vou fumar maconha”. Os consumidores de “Cristina”, a canção, ficavam (será?) por fora. Era tempo de brincar (brincar?) de esconde-esconde.
A MPB “desbundada”
Vinte e um anos depois de “Chico Brito”, o carioca Jards Macalé e o baiano Waly Salomão subiam os morros no Rio e traziam na descida “Vapor barato” (1971), tristíssimo hino contracultural divulgado pela baiana Gal Costa na ausência dos parceiros tropicalistas Gilberto Gil e Caetano Veloso. O que seria um “vapor barato”? Um “velho navio” a vapor? O vapor que escapa do cigarro de maconha? Vapor, o menino do morro utilizado como intermediário em tráficos leves e pesados? As dunas da Gal evaporavam na dúvida, enquanto os “rebeldes” que não aderiam à “guerrilha” ou ao “terrorismo” derivavam para o “desbunde”. O eufemismo, aqui, seria o da fuga da “vida real” por vias químicas.
Outro marco do mesmo momento Fatal de Gal é “Dê um rolê” (1971), dos Novos Baianos: “Não se assuste, pessoa,/ se eu lhe disser que a vida é boa/ enquanto eles se batem, dê um rolê”. “Dar um rolê” seria, para os Novos Baianos, senha escamoteadora de outra prática. Os Novos Baianos, pilhados, ao que reza outra lenda, pelo conterrâneo bossa-novista João Gilberto, desbundaram geral no álbum Acabou chorare (1972), e em especial na faixa “A menina dança”, dominada por uma Baby Consuelo de pupilas dilatadas: “Quando cheguei, tudo, tudo, tudo estava virado/ apenas viro, me viro, mas eu mesma viro os olhinhos/ […] no canto, no cisco, no canto do olho, a menina dança/ dentro da menina/ a menina dança/ e se você fecha o olho a menina ainda dança”.
A MPB “desbundada” seria transbordante em referências tácitas (que hoje soam comovedoramente diretas) ao uso das drogas, a começar por “Maria Joana”, assinada, acredite, pelo capixaba Roberto Carlos em dupla com o carioca Erasmo Carlos – e lançada pelo segundo sob arranjo alucinógeno forrado de sapinhos coachantes: “Só ela me traz beleza nesse mundo de incerteza/ quero fugir mas não posso/ esse mundo inteirinho é só nosso/ eu quero Maria Joana”. Erasmo (e Roberto) queria(m) Maria Joana, a menina, ou marijuana, a erva? “Eu vejo a imagem da lua/ refletida na poça da rua/ e penso na minha janela/ eu estou bem mais alto que ela.”
Para audição de pouquíssimos, o futuro “maldito” paulista Walter Franco seguia a pista dos Mutantes em “Tire os pés do chão” (1971): “Tire os pés do chão/ vamos flutuar/ longe da razão/ sem pressa pra voltar.” Em 1975, ele seria mais cirúrgico na concretista “Eternamente”: “Eternamente/ é ter na mente/ éter na mente.”
Gilberto Gil voltou motorizado do exílio, dando bandeira em “Expresso 2222” (1972), “Barato total” (1974, cantada por Gal) e na chapadíssima “Abra o olho” (1974): “Ele disse ‘abra o olho’/ caiu aquela gota de colírio/ eu vi o espelho/ ele disse ‘abra o olho’/ eu perguntei como é que andava o mundo/ ele disse ‘abra o olho’/ o telefone tocou/ soando como um grilo de verdade/ eu ouvi o grilo/ o grilo cantando/ tava eu no mato de novo/ no mato sem cachorro/ eu pensei ‘tá direito’/ que eu nunca tive cachorro ao meu lado/ ele disse ‘abra o olho’/ eu disse ‘aberto’, aí vi tudo longe/ ele disse ‘perto’/ eu disse ‘está certo’/ ele disse ‘está tudinho errado’/ eu falei ‘tá direito’/ tudo numa gota de colírio/ ele disse ‘é delírio’/ navegar nas águas de um espelho/ ‘nego, abra o olho’”.
O colírio virou vedete, também em “Como vovó já dizia” (1974), do baiano da pá virada Raul Seixas: “Quem não tem colírio usa óculos escuros”. O ano de 1974 marcaria o desbunde do desbunde, movido às mais variadas drogas, das químicas às religiosas. O ex-mutante Arnaldo Baptista ficou “lóki”, “numa boa, pescando pessoas no mar”. A ex-mutante Rita Lee foi para o pasto procurer cogumelos de zebu. Raul se integrou à Sociedade Alternativa. Tim Maia entrou no Universo em Desencanto. Jorge Ben se convenceu de que os alquimistas estavam chegando. Roberto Carlos se aprofundou na picada aberta, em 1970, pelo “Jesus Cristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui”.
O acreano João Donato (em dupla incrível com Gil) foi fumar plantas exóticas, como contaria em “Bananeira” (1975): “Bananeira não sei, bananeira sei lá/ bananeira sei, não, a maneira de ver/ bananeira não sei, bananeira sei lá/ bananeira sei, não, isso é lá com você.”
Gil e Rita pagaram pela trupe inteira. Em 1976, durante turnê dos Doces Bárbaros (com Caetano, Gal e Maria Bethânia), Gil acabou detido por porte de drogas – foi preso, julgado, punido, publicamente humilhado etc. Rita também pegou cana por porte de drogas, grávida, para ser visitada em solidariedade solitária pela (supostamente) caretona gaúcha Elis Regina. Caetano proclamaria aversão histórica às drogas, mas isso não o impediu de fundir cucas lelés com “Odara” (1977): “Deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara/ minha cara minha cuca ficar odara”. Quem não dançava segurava as crianças.
Novo marco aconteceria em 1980, nada menos que na tela da então “platinada” (?) Rede Globo, durante uma tentativa de ressuscitar os festivais da canção, a bordo de uma travessura da dupla-casal Baby Consuelo & Pepeu Gomes, ex-Novos Baianos. Era tarde demais quando a ditadura percebeu o que o reggae “O mal é o que sai da boca do homem” queria dizer ao dizer o seguinte: “Você pode fumar baseado/ baseado em que você pode fazer quase tudo/ contanto que você possua/ mas não seja possuído/ porque o mal nunca entrou pela boca do homem…/ porque o mal é o que sai da boca do homem…”
O nome fora pronunciado: “baseado”. “Chico Brito” estava de volta, surpreendentemente audacioso – e a repressão  cobraria seu preço, desancando a Globo, a gravadora Som Livre, o Pepeu e a Baby. Possuída (será?) pelo espírito dos anos 1990, Baby viraria pastora evangélica empenhada no discurso de combate às drogas.
De cima para baixo, álbuns emblemáticos de Jorge Ben (A tábua esmeralda – 1974); Tim Maia (Chocolate – 1971); Bezerra da Silva (Cocada Boa – 1993); e Ultraje a Rigor (Nós vamos invadir sua praia – 1985)
Os oitenta e as drogas,
de forma explícita, nos noventa 
A década de 1980, de proclamada abertura política, seria estranhamente recatada musicalmente, à parte um “Lança perfume” (Rita Lee, 1980) aqui, um alcoólico “Louras geladas” (RPM, 1985) acolá. A chegada de uma nova geração roqueira, ainda sob marcação cerrada da censura oficial, traria poucas menções mais corajosas, a exemplo de “Mim quer tocar” (1983), do grupo paulista Ultraje a Rigor, que tratava de (quase) rimar dinheiro com maconheiro. “Mim é brasileiro/ mim gosta banana/ mas mim também quer votar/ mim também quer ser bacana/ mim gosta tanto tocar/ mim é batuqueiro”, cantava em moldes autocomiserativos, meio “Chico Brito”, o hoje conservadoríssimo Roger Moreira, ao que o coro replicava, gostosamente: “Conheiro!”
“Parece cocaína, mas é só tristeza”, lamentaria Renato Russo, da brasiliense Legião Urbana, em “Há tempos” (1989), refletindo barras mais pesadas. Nele, no carioca Cazuza e (anos mais tarde) na brasiliense Cássia Eller, a doidice química se confundira perigosamente, venenosamente, com sexualidade e homossexualidade, aids e morte. A mensagem não seria alvissareira para jovens dos anos 1980 e 1990.
O samba oitentista também se aventurou pelos tabus, principalmente graças ao impagável pernambucano Bezerra da Silva, que preferia quase sempre falar de cocaína (Cocada boa seria o título do CD de 1993), mas é intérprete do clássico “A semente”, na melhor (e nem por isso bem-sucedida) tradição “não compre, plante”: “Meu vizinho  jogou/ uma semente no seu quintal/ de repente brotou/ um tremendo matagal/ quando alguém lhe perguntava ‘que mato é esse que eu nunca vi?’/ ele só respondia ‘não sei, não conheço, isso nasceu aí’/ mas foi pintando sujeira, o patrão estava sempre na jogada/ porque o cheiro era bom e ali sempre estava uma rapaziada/ os homens desconfiaram ao ver todo dia uma aglomeração/ e deram um bote perfeito, levaram todos eles pra averiguação.” O guarda Peçanha estava de volta à carga para aterrorizar Chico Brito, com garras particularmente pontudas e afiadas.
No mesmo 1987, o carioca Zeca Pagodinho vinha beliscar os tabus, de modo defensivo, em “Maneiras”: “Se eu quiser fumar eu fumo/ se eu quiser beber eu bebo/ pago tudo que eu consumo com o suor do meu emprego/ confusão eu não arrumo/ mas também não peço arrego/ eu um dia me aprumo/ tenho fé no meu apego…”
Os sambistas faziam prenúncio para os rappers dos anos 1990, que, com Racionais MC’s e Mano Brown na liderança, trariam o tema das drogas ao primeiro plano, de modo explícito, sem nenhuma meia palavra. Não que não se tenha tentado, vezes incontáveis, mas como as forças repressivas se atirariam sobre artistas que estavam denunciando, mais que louvando o flagelo social carreado com as drogas? O rap abriu as portas para que as palavras que não se pronunciam começassem a ser pronunciadas.
Os pernambucanos Chico Science & Nação Zumbi cantaram “Macô” (1996). Apadrinhados por Waly Salomão e regravando “Vapor barato”, os cariocas d’O Rappa fizeram “A feira” (1996), de modo admiravelmente transparente: “É dia de feira, quem quiser pode chegar/ vem maluco, vem madame, vem maurício, vem atriz/ pra comprar comigo/ tô vendendo ervas que curam e acalmam/ tô vendendo ervas/ que aliviam e temperam…” O rap-roqueiro paulista Chorão, com seu Charlie Brown Jr., seguiria nessa pista em tons fortes, de títulos como “Zóio de Lula” (1999), “Não deixe o mar te engolir” (1999), “Fichado” (2000), “Com a boca amargando” (2002), “Cheirando cola” (2004)…
Provavelmente nenhum deles ousaria tanto se não tivesse surgido antes um elemento emergente carioca, o Planet Hemp de Marcelo D2, Black Alien e BNegão, primeira iniciativa brasileira a adotar o “legalize já” como bandeira ao mesmo tempo musical e ideológica. Os três discos de estúdio da banda de rock-rap eram retos, diretos e repletos de reivindicações pró-maconha: 1995 – “Não compre, plante!”, “Legalize já”, “Maryjane”, “Fazendo a cabeça”, “Skunk” e “Porcos fardados”; 1997 – “Queimando tudo”, “Biruta”, “Se liga”; 2000 – “Ex-quadrilha da fumaça”, “Quem tem seda?”, “O sagaz Homem-Fumaça”.
A repressão policial partiu com tudo para cima da nação Hemp, possivelmente exercida por sobrinhos dos delegados e promotores, que, em 1976, passavam lição moral no futuro ministro da Cultura Gilberto Gil. Perseguição, proibições, prisão, processos – de tudo tiveram de enfrentar os rappers que, aos olhos das forças repressivas, faziam “apologia” ao crime. A cultura de polícia administrativa venceu, e a banda se dissolveu após a terceira tentativa. D2 seguiu em suas convicções, mas obrigado a se abrandar mais e mais.
É temerário tentar medir, até por falta de distância histórica, mas em certa medida a perseguição ao Planet Hemp surtiu alguns dos efeitos desejados pelo ideário tradição-família-propriedade-repressão. Nas gerações mais recentes, é costumeiro o discurso roqueiro abstêmio, de ídolos rebeldes que apreciam declarar que não bebem, não fumam etc. Os novos forrozeiros e sertanejos mandam brasa, mas preferem se deter às bebidas alcoólicas. O tecno-sertanejo “Eu te amo e open bar” (2011), é tema-símbolo, na voz do paranaense Michel Teló: “Tudo que eu quero ouvir/ eu te amo e open bar.”
A pertinácia, atualmente, fica por conta de gêneros musicais marginalizados e de periferia, notadamente o funk carioca e o rap (sempre ele), inclusive em versos de denúncia como os de Criolo, em “Linha de frente”, “Bogotá”, “Sucrilhos” (sucrilhos valem como droga?) etc., todos do celebrado álbum Nó na orelha (2011).
No funk carioca, o iconoclasta Mr. Catra é explícito em “Cadê o isqueiro?” (2011): “Minha memória é pouca, mas tem expansão/ eu vou dizer, pode entender/ minha inspiração vem do THC/ que invade os pulmão, invade os cano da circulação/ que assim de repente invade a mente, deixando você todo dormente/ neurônios, são poucos que restam/ neurônios que sobram são poucos/ o que vou fazer com aqueles que restam queimar,/ como eu fiz com os outros?”
São 61 anos de separação entre “Chico Brito” e “Cadê o isqueiro?”. Pouca coisa parece ter sido resolvida nesse setor, de lá para cá. O funkeiro (negro) Mr. Catra se desprende do Wilson Baptista de outrora ao se autoafirmar mais dono dos próprios neurônios que produto de uma sociedade conservadora amorfa, localizada sempre lá fora, nunca aqui dentro. Os meninos do asfalto, eternos compradores desses outros, parecem preferir se esquivar e fazer de conta de que não participam da geleia geral. Mas Mr. Catra ocupa o vácuo em ritmo de funk-candomblé, sem poupar-nos, os garotos (brancos) do asfalto, da denúncia de um velhíssimo e resistente “chicobritismo” autovitimizador: “Por que prender o usuário?/ por que matar o varejista?/ hipocrisia é discriminar/ cabeça feita é ser realista/ […] falso moralismo de doidão, caô”.
*cappacete

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