Qual era a onda da Libelu?
Me enterrem com os trotskistas
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu
me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu
me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão
(Paulo Leminski, Para a liberdade e luta)
O nome é simpático. Lembra o apelido carinhoso de uma moça, a palavra
amor em alemão, a corruptela de “libelo”, um poema concreto. Liberdade e
Luta: Libelu. A corrente de inspiração trotskista seduziria centenas de
jovens em meados da década de 1970, quando o movimento estudantil
começava a renascer no Brasil, ainda durante a ditadura militar. Eu não
alcancei a Libelu. Na minha época de estudante, mais de uma década
depois, só havia duas opções: ser do PCdoB (Viração, a quem chamávamos,
na Bahia, de “cururus”) ou anarquista. Gostei mais dos anarquistas, eram
mais divertidos e não proibiam a maconha.
Curioso é que, se não conheci nenhum na faculdade, hoje em dia, para
qualquer lado para onde olho, vejo um ex-Libelu –à esquerda, mas também à
direita. Talvez você não saiba, mas pode haver um Libelu a seu lado
neste momento, no jornalismo, nas trincheiras partidárias ou em uma
atividade sem nenhuma relação com a política. O ex-ministro Luiz
Gushiken, morto no dia 14 de setembro, foi da Libelu, assim como o
também ex-ministro Antonio Palocci e Clara Ant, assessora de Lula.
Markus Sokol, candidato à presidência na atual sucessão à direção
nacional do PT, é outro ex-Libelu.
Na Folha de S.Paulo, onde trabalhei muitos anos, eu nem sabia, mas
estava cercada por ex-militantes do braço estudantil da OSI (Organização
Socialista Internacionalista), que tinha como um de seus dirigentes
Luis Favre. Caio Túlio Costa, que foi secretário de redação e ombudsman
do jornal, Matinas Suzuki, Laura Capriglione e Mario Sérgio Conti, entre
outros, foram da Libelu. À frente da Folha em sua renovação, no início
da década de 1980, Otavio Frias Filho empregou muitos militantes de
esquerda no jornal, que tinha, talvez até por isso, um perfil muito
menos conservador do que hoje. Além dos ex-Libelu, havia também,
ocupando postos importantes na redação, ex-militantes do MR-8 e da
Refazendo. Nesta época, a Folha, que apoiara o golpe militar, fez
campanha pelas Diretas Já.
Por que havia tantos jornalistas na Libelu? Ao que tudo indica, porque a
ECA (Escola de Comunicação e Artes) da USP estava tomada por eles. Caio
Túlio, que deixou a militância ao sair da faculdade, em 1979, foi o
responsável por levar muitos companheiros de tendência para a Folha. “O
Otavio não era simpatizante da Libelu, mas gostava da ‘disciplina’ dos
trotskistas. Ele era simpatizante da Vento Novo, uma corrente (de centro)
que havia na São Francisco”, conta Caio Túlio. “Fui o primeiro Libelu
contratado para começar a renovação do jornal, em 1981. E fui trazendo
os melhores jornalistas que conhecia, o Matinas, o Conti (que estava
confinado na Câmara dos Vereadores como setorista e eu trouxe para a
Ilustrada e o Folhetim), o Rodrigo Naves, a Renata Rangel, o Zé Américo,
a Cleusa Turra, o Bernardo Ajzenberg, o Ricardo Melo. Muita gente, não
me lembro de todos… Cada um foi trazendo outros. Eram bons, muito bons.”
Com opiniões muitas vezes opostas hoje em dia, Paulo Moreira Leite, hoje
na IstoÉ, e Miriam Leitão, comentarista do jornal O Globo, também foram
Libelu –sobre Miriam, há controvérsias; há quem diga que era do PCdoB.
Uma parte dos ex-Libelu acabaria descambando para a direita mais feroz,
como o blogueiro da Veja Reinaldo Azevedo (que também trabalhou na Folha
na fase Libelu) e o sociólogo e colunista do Estadão Demétrio Magnoli.
Com o nascimento do PT, em 1979, a Libelu se dissolveu. Muitos dos seus
quadros migraram para o partido, embora, num primeiro momento, tenham
acusado o metalúrgico Lula de ser “pelego”. Alguns foram integrar a
corrente O Trabalho com Sokol, e outros, como Palocci e Clara, ficaram
no entorno de Lula na Articulação. Outros ainda, como os jornalistas
citados, simplesmente deixaram a militância de esquerda.
A Libelu foi, de certa forma, uma corrente à frente de seu tempo.
Primeiro por retomar o slogan “Abaixo a Ditadura” antes de todo mundo;
depois, por criticar o autoritarismo e as barbaridades dos regimes
comunistas muitos anos antes da queda do muro de Berlim ou da
Perestroika. Trotskista, a OSI, a quem a Libelu era vinculada, já nasceu
fazendo a crítica ao stalinismo. Apoiava os esforços de democratização
do socialismo no Leste europeu, denunciou a invasão da Checoslováquia
pelas tropas do Pacto de Varsóvia e, mais tarde, fez campanha de apoio
ao sindicato Solidariedade na Polônia. Sua visão era de que, sem uma
revolução política na União Soviética, haveria uma regressão econômica,
através da restauração do capitalismo. E não deu outra.
Apesar de trotskistas, os militantes da tendência não toleravam o culto à
personalidade em figuras como o líder chinês Mao Tsé-Tung. “Os Libelu
eram muito severos em relação a Mao, ao Livro Vermelho, à revolução
cultural, ao culto à personalidade, ao autoritarismo, aos assassinatos
etcétera e tal”, conta Caio Túlio Costa. “Mas teve um caso engraçado. Na
tentativa de criticar o culto à personalidade, fizemos uma edição do (jornal)
Avesso cuja capa era o Mao, num dos retratos do realismo socialista da
época, grandão, o povo em reverência, abaixo, e inserimos uns versos de
Neruda para distanciar o leitor: ‘Só o espanto era invisível, foi a
proliferação daquele impassível retrato que incubou o desmedido’.
Evidentemente que ninguém entendeu o espírito crítico atrás da foto e do
poema, e a edição esgotou. Contrariamente a todos os nossos intentos,
os maoístas fizeram da capa pôster de parede…”
O hino da Libelu era uma versão da canção entoada no filme O Incrível Exército de Brancaleone,
de Mario Monicelli, com uma sacada divertida: “Branca, Branca, Branca,
Leon, Leon, Leon”. Em homenagem a, claro, Trotski. É difundidíssima a
versão de que as festinhas da Libelu eram as mais animadas do movimento
estudantil e com as garotas mais bonitas, e que havia uma certa
liberação no que tange à maconha, ao contrário das demais tendências de
esquerda do período. “A Libelu era um curioso e original amálgama
político-comportamental, em que o trotskismo convivia com o rock, com o
fuminho e com as meninas do pós-queima-dos-sutiãs”, escreveu Matinas
Suzuki na Folha de S.Paulo em 1997.
Mas essa concepção festiva não encontra unanimidade entre outros
ex-Libelu. “Isso é lenda. As festas da Refazendo eram tão boas quanto às
da Libelu. Todos eram muito liberais quanto aos costumes. Não havia
Aids. As pessoas estavam sempre muito juntas, fazendo política quase que
24 horas por dia! Eram poucos os que saíam para ‘a noite’. As festas
eram nas casas ou repúblicas das mesmas pessoas”, conta Caio Túlio.
“Droga era considerada ‘oficialmente’ alienante, mas muitos, muitos, a
usavam. Não acredito que a Libelu fosse mais ou menos tolerante do que
as outras correntes, onde sempre havia alguém que usava droga, em geral a
maconha. Entre a liderança, no entanto, na Libelu, eram pouquíssimos os
que usavam drogas.”
“Eu sempre brinco e digo que isto é ‘calúnia’ dos adversários. Fazíamos
grandes festas públicas, sempre para arrecadar fundos para o grupo.
Havia festas mais fechadas, mas longe do que o mito criou. Sobre os
costumes, sim, éramos o grupo mais avançado. Havia respeito e luta pela
igualdade de gênero, todos nos considerávamos feministas, defensores da
livre orientação sexual”, diz Adeli Sell, ex-vereador do PT-RS e
ex-Libelu. “A gente não tinha uma visão moralista do uso das drogas, a
restrição era por conta da repressão, porque usando drogas era mais
fácil ‘cair’. Até sem usar, muitas vezes a polícia enxertava drogas para
uma prisão. Mas muita gente continuava ‘dando uns pegas’ em baseado.
Nunca vi nem ouvi falar de outras drogas na época.”
“As festas eram boas, em primeiro lugar, porque os militantes eram
jovens. Hormônios em altíssima voltagem, num ambiente de nenhum
moralismo. Adversária do dirigismo cultural e de qualquer coisa que
pudesse lembrar o chamado realismo socialista, a OSI/Libelu não
estimulava o preconceito contra o rock, o que era muito frequente
naquela época. O pessoal gostava de MPB e ouvia muita Rita Lee, Mutantes
e mesmo sucessos estrangeiros. Havia espaço para Cartola e Paulinho da
Viola, também. Certa vez, Baby Consuelo, em fase pré-pentecostal,
naturalmente, foi a estrela de um dos shows promovidos pela Libelu. Mas
ela não era simpatizante. Cobrou cachê”, conta um ex-militante que
prefere se manter na clandestinidade até hoje. Segundo ele, a maconha
não era nada tolerada e teve até dirigente expulso por ser flagrado
puxando fumo. “Nunca se aceitou a noção da contracultura de que as
drogas poderiam auxiliar na formação da consciência das pessoas. A visão
era de que a consciência se forma por uma compreensão racional da
política e da história. As drogas também eram consideradas portas de
contato com a polícia e criminalidade, o que deveria ser evitado a
qualquer custo.”
“As festas eram ótimas, sim. Nunca pensei que alegria e compromisso
social fossem incompatíveis. Mas em outras organizações eram abominadas e
seus militantes tinham vida de monastério”, lembra Luis Favre. “Diziam
que as mulheres eram mais bonitas, mas o que em realidade acontecia é
que elas tinham destaque na disputa política estudantil. Ao mesmo tempo,
a juventude vivia sob o impacto do maio de 68 na França, da primavera
de Praga, e a Libelu era das poucas que se identificava com ambos os
processos, pois condenava não só o capitalismo, como aquele sinistro
sistema pretensamente ‘socialista’.” Sobre as drogas, diz Favre, “a
condenação era muito estrita na corrente trotskista. Não se brincava com
isso, ainda mais no período militar”.
Pergunto aos ex-militantes
algo que me deixa particularmente curiosa: como é que alguns membros da
vanguardista Libelu foram parar na direita mais reacionária?
Paulo Moreira Leite:
– Acho que em anos recentes os grupos conservadores recrutaram
militantes em todas as correntes da esquerda brasileira. Possivelmente
por causa de seus laços com a ditadura, nossos conservadores nunca
tiveram meios de formar seus próprios quadros civis para atuar numa
democracia. O PPS, que era o antigo Partido Comunista, foi em bloco para
a direita e hoje se dedica a combater o PT. É sua razão de ser. Muitos
quadros do PSDB que fizeram a privatização de estatais no governo de
Fernando Henrique Cardoso vieram da Ação Popular e do PCB. Você encontra
antigos militantes da ALN de Marighella entre pessoas que são
anti-petistas 24 horas por dia. Os principais dirigentes da OSI ajudaram
a fundar o PT e quem continuou em sua atividade política na vida adulta
continua neste partido. A organização teve uma divisão importante na
década de 1980, quando eu já não era mais militante, mas todos
ingressaram no PT. Antes, outros fundaram o PCO. Mas é certo que alguns
quadros, que foram militantes na juventude, seguiram outra perspectiva
na vida e se tornaram intelectuais orgânicos de grupos conservadores.
Não vejo nada de muito especial nisso. Não foi a regra. Alguns casos
você pode explicar pelos confortos que o conservadorismo pode
proporcionar. Ele dá prestígio, promove as pessoas. Mas não só. O país
se democratizou, o PT se consolidou. Ocorreram mudanças muito
importantes no mundo, a começar pela queda do Muro de Berlim e tudo o
que ela representou. Apareceram questões e desafios diferentes para todo
mundo.
Adeli Sell:
– Bem, aqui em Porto Alegre tem um aguerrido militante que foi para
posições bem à direita, como sei do caso do comentarista da Band. Mas de
resto não sei se foram para a direita. Deve ter mais alguns, mas a
maioria dos que conheço está no PT. Alguns foram para o PSOL, o que
lastimo profundamente, pois foram estes quatro ou cinco militantes que
foram fundamentais para a minha entrada na Libelu e minha formação
política. Pelo que vejo aqui e dos que encontro espalhados pelo país, a
maioria continua com posições avançadas, de esquerda, militando
ativamente.
Luis Favre:
– Em todas as organizações juvenis encontramos casos de indivíduos que
evoluíram para o extremo oposto de suas primeiras convicções. Mas, pelo
contrário, o mais notável no caso da Libelu é que uma grande parte de
seus quadros participaram e participam ainda hoje da CUT e do PT. E
muitos dos que se afastaram da atividade militante ou política continuam
do mesmo lado, em termos gerais, dos ideais que abraçaram na juventude.
Encontrei muitos deles acompanhando e despedindo-se do nosso querido
Luiz Gushiken.
Caio Túlio Costa:
– Não foram só integrantes da Libelu que mudaram de posição radicalmente
na vida. Alguns ex-Libelu chamam a atenção porque eram todos jovens
trotskistas, de extrema-esquerda, e se transformaram em pessoas bastante
conservadoras. Acho que esses fenômenos fazem parte do movimento normal
da vida; não me assusto com isso, não. A rigor, na realidade, veja bem,
eles não mudaram, continuam extremistas…
Uma vez Libelu sempre Libelu? Há algo da corrente que permanece nos ex-militantes até hoje?
Caio:
– Em alguns, certamente. A formação política rigorosa (muita leitura,
grupos de estudo, reuniões intermináveis, assembleias estudantis, luta
política, alinhamento internacional, ceticismo em relação às
instituições “burguesas”) deixa marcas profundas. Gushiken, por exemplo,
ou alguns dos líderes de então, como o Markus Sokol ou o Julio Turra.
Estes serão sempre Libelus autênticos.
Adeli:
– Tem uma liga, uma solidariedade, um profundo companheirismo, carinho,
muitas e muitas identificações. Tanto é assim que pretendemos ainda
neste ano fazer a grande festa da Libelu. Com a morte do Gushiken, todos
impactados com a grande perda, achamos que devemos nos encontrar e
festejar o que fizemos.
Luis:
– Uma parte importante da Libelu conseguiu superar suas limitações, sua
estreiteza ideológica, seu sectarismo e intelectualismo, em parte
desconectado da realidade, para, junto a outros militantes, de outras
origens, com outra história, construir uma central sindical e um dos
maiores partidos de esquerda do mundo. Ter contribuído um pouquinho no
que essa central sindical e esse partido aportou ao progresso social do
Brasil, já é fonte de satisfação para os que participamos dessa “nossa”
história. Mudamos muito, sem mudar de lado.
Paulo:
– A militância politica é uma experiência única na existência, faz parte
de sua memória para sempre. Acontece com a OSI ou outras organizaçãos.
Ninguém passa impunemente por isso. Você entra em contato com forças
absolutas, tem a nítida sensação, correta ou não, de que está mexendo na
roda da história. Dedica as melhores horas de seu dia e possivelmente
alguns dos melhores anos de sua vida para construir uma sociedade
diferente. Os livros que você lê, os filmes que assiste e até seu
trabalho como cidadão comum têm outro sentido. Hoje você pode até achar
que estava sonhando, mas aquele momento foi maravilhoso. Os projetos
podem ter dado errado, a vida pode ter tomado outro rumo e muitos amigos
de antes até se mostraram uma decepção, mas você aprendeu ali algumas
verdades que vão te acompanhar pelo resto da vida.
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