Em sete anos, Lei Maria da Penha acumula 700 mil ações contra agressores
Exatos sete anos após entrar em vigor, em 22 de setembro de 2006, a
Lei Maria da Penha acumula perto de 700 mil procedimentos judiciais
contra agressores de mulheres no Brasil, entre atendimentos, medidas de
proteção e prisões, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ). Até março deste ano, data do último mapeamento, eram 677.987
ações. O CNJ não tem dados atualizados sobre quantas dessas viraram
efetivamente processos criminais. A informação mais recente a esse
respeito é de 2009, quando, de 400 mil casos, 80% (ou 330 mil) tinham
seguido adiante na Justiça, com quase 80 mil sentenças definitivas e
nove mil prisões provisórias ou em flagrante.
Expressivos, os números mostram o acerto da lei, mas não escondem
que ainda há muito por fazer. As 80 mil sentenças definitivas
correspondem a apenas 20% casos registrados até 2009. E as prisões
equivalem a pouco mais de 2%. Em os entraves que impedem a aplicação
mais efetiva e universal da lei, segundo quem lida diretamente com o
tema, é a carência de varas e juizados especializados no atendimento a
mulheres vítimas de violência. São 66 hoje em todo o país. Para o CNJ,
deveriam ser pelo menos 120.
Já as Delegacias da Mulher, embora presentes em vários municípios,
geralmente não têm estrutura adequada de atendimento, como equipes
multidisciplinares (psicólogos, médicos, assistentes sociais) e
funcionamento 24 horas.
“Temos delegacias especializadas em todo o país, mas muitas ficam
fechadas nos finais de semana e à noite, horários em que as mulheres
mais precisam ter referências sobre aonde ir”, relatou a secretária de
Segurança Pública do Ministério da Justiça, Regina Miki, para quem ainda
há muito a fortalecer no sistema de proteção à mulher. Além disso, as
instituições diretamente ligadas ao tema detectam falta de agilidade na
decretação das medidas de proteção – como obrigação de que determinado
homem se mantenha a certa distância da vítima.
Políticas públicas
“As coisas têm mudado, mas não com a rapidez que a mulher deseja.
Essa mudança, infelizmente, tem acontecido mais nas grandes cidades. As
pequenas ainda não contam com políticas públicas que atendam de maneira
satisfatória. A maioria dos estados ainda necessita trabalhar mais essa
questão, oferecer equipamentos, principalmente os Centros de Referência
da Mulher e as Delegacias da Mulher. Quando existe um destes locais numa
determinada cidade, com equipe multidisciplinar preparada para atender
uma vítima de violência, a mulher, que chega muito fragilizada, se sente
encorajada a denunciar”, atesta a farmacêutica Maria da Penha Maia
Fernandes, cujo caso deu nome à lei.
Maria da Penha é símbolo tanto da luta contra a violência de gênero
quanto da impunidade aos agressores. Em 1983, seu então marido tentou
matá-la duas vezes, primeiro a tiros, depois por eletrocução. Devido à
sequência de agressões, ela ficou paraplégica. Ele acabaria condenado a
oito anos de cadeia, mas ficou preso só dois e está livre até hoje.
No final de agosto, com o encerramento da Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) sobre a violência contra a mulher – solenidade que
contou com a presença da presidenta Dilma Rousseff – foram anunciadas
novas políticas públicas com o objetivo de ampliar o trabalho de
proteção – entre elas a instalação de casas de apoio em todos os
estados.
O relatório final da comissão sugeriu 13 projetos de lei, que já
estão tramitando na Câmara ou no Senado. Vários foram aprovados em ao
menos uma das duas casas. O mais emblemático é o que altera o Código
Penal e a Lei dos Crimes de Tortura para incluir a tipificação de um
novo crime, intitulado “feminicídio”.
Efetividade
Entre 2002 e 2012, 43,7 mil mulheres foram assassinadas em
circunstâncias associadas à violência doméstica. Os estados com maior
incidência são Espírito Santo, Alagoas e Paraná – mais de seis mortes
para cada 100 mil habitantes.
“Poucas leis foram tão disseminadas quanto essa, mas precisamos
evoluir também no campo do comportamento. Lamentavelmente, ainda estamos
vivendo um clima de aplicação da mesma. A lei precisa ser aplicada sim,
mas ela precisa ter a efetividade que deveria”, afirmou o desembargador
Ney Freitas, ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e
quem coordenou as últimas pesquisas do órgão sobre o tema.
A pesquisa concluída em março, que cruza dados do Mapa da
Violência, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República, mostra que a região brasileira com mais unidades judiciais
específicas é o Sudeste, com 20.
O Centro Oeste conta com 16 unidades, mas dez delas estão
concentradas no Distrito Federal. Nos demais estados da região, o
atendimento é precário e superlotado, com uma única vara ou juizado. No
Nordeste, são 15 unidades. No Sul, apenas três, uma em cada estado.
Agressões físicas
Dados da Secretaria de Política para Mulheres mostram que a
agressão física ainda é o mais comum dos crimes, presente em 44,2% dos
casos registrados na polícia ou diretamente no Judiciário. Depois vêm a
agressão psicológica (20,8%) e a agressão sexual (12,2%). Com mulheres
entre 20 e 50 anos, o parceiro é o principal agente agressor. Até os
nove anos e depois dos 60, a violência na maior parte das vezes vem de
pais e filhos, respectivamente.
Os estados com mais inquérito policiais registrados nestes sete
anos são o Rio de Janeiro (43 mil), o Rio Grande do Sul (39 mil) e Minas
Gerais (21 mil). O Rio também tem o maior número de ações penais
encaminhadas (16 mil), seguido de Mato Grosso (15 mil) e Pará (11 mil).
Isso não significa, necessariamente, que estes sejam os lugares
campeões de violência de gênero, mas aqueles em que as mulheres têm mais
disposição, meios ou garantias para fazer a denúncia.
O medo de acusar o agressor ainda é grande, seja pela perspectiva
de impunidade, seja por questões culturais, conforme ressalta a ministra
Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para Mulheres. “Se as
mulheres não denunciarem, não existe crime. Como podemos acabar com a
impunidade sem a denúncia? Assim a lei não pode ser aplicada”,
enfatizou.
Chantagens, ameaça e medo
Mas essa nunca é uma decisão fácil de tomar, como relata a
administradora de empresas A.C.S., uma da 700 mil mulheres que procuram o
amparo da lei nos últimos anos.
“Acho que a transformação maior é a que vem de dentro de nós.
Convivi por 20 anos com um marido que me batia. Quando resolvi dar um
basta e me separar, sofri tantas chantagens e ameaças de morte que
preferi voltar atrás da decisão. Por sorte, tive uma prima que morava em
outro estado, me convenceu e me acolheu. Pude iniciar a vida,
oficializar o divórcio com direito à partilha dos bens acumulados e
ainda indiciá-lo pela Lei Maria da Penha. Mas posso dizer: não foi nem
está sendo fácil”, relatou ela, que nasceu e construiu sua vida no
Distrito Federal, mas hoje mora em outro estado.
Sem nunca ter trabalhado, de família classe média, a administradora
contou que enfrentou grandes dilemas consigo mesma e com alguns
integrantes mais próximos da família, como irmãos e filhos, que lhe
pediam para não denunciar o marido. Mesmo hoje, não se sente à vontade
de voltar a Brasília, de onde saiu quando resolveu processar o
companheiro e dar um basta às agressões.
“É preciso mais apoio para a aplicação da lei e maior estrutura
sim, mas o mais importante é dar às mulheres um reforço moral, para que
tenham coragem. Porque, apesar de ser uma violência que agride muito,
sobretudo internamente, já que parte na maioria das vezes de pessoas que
amamos, a denúncia ainda consiste numa questão cultural. E nós não
conseguimos mudar totalmente essa cultura”, disse.
*Nassif
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