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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista
segunda-feira, setembro 23, 2013
Feliciano pensou que é: Dono da praça pública
Dono da praça pública
Débora Diniz
O Estado de S. Paulo
Erro de local e hora não foi das garotas hostilizadas por Feliciano, mas do pastor que se apropriou da rua como se seu templo fosse
Um pastor com poderes de governante de um Estado laico. Foi a isso que assistimos no último curto- circuito entre religião e democracia protagonizado pelo deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP). “Aquelas duas meninas têm que sair daqui algemadas!”, esbravejou o pastor-deputado. Seu mal-estar era um beijo lésbico entre duas jovens. O espaço não era um templo,mas uma festa na praça principal de São Sebastião, uma cidade do interior de São Paulo, cujo maior financiador foi a prefeitura do município. Uma festa ao ar livre,com dinheiro público, auto intitulada “semana socio cultural”, porém tendo um pastor como soberano do Estado. As ordens de Feliciano não bradaram apenas no microfone, mas na força policial que arrastou as garotas para a delegacia.
Poderia ter sido pior. Os números dizem que 350 mil pessoas passaram pela praça para se divertir ou louvar. Os gritos de ordem de Feliciano foram acompanhados por um coro de fiéis também ávidos por vingança. Não sei o que sentiam enquanto gritavam – se nojo das mulheres ou lealdade ao pastor.
As duas mulheres viveram momentos de pânico, e as marcas do corpo são algumas das cicatrizes da violência. Talvez porque a multidão fosse pacífica ou porque também se intimidou com a força policial, não houve um massacre animado pelos gritos do pastor ao microfone. A multidão se aglomerou como abutres em torno das duas garotas – uma apanhava enquanto resistia e gritava, a outra era arrastada.A imagem das duas garotas provoca compaixão pela juventude e pelos corpos miúdos :indefesas na carne, porém convencidas do direito de existir como desejam.
Erra quem resume o evento a um abuso da força policial. Essa é uma das peças mal postas na história, mas há outras que a antecedem. A primeira é o Estado brasileiro financiar eventos que se descrevem como culturais, mas cujas estrelas os assumem publicamente como religiosos.A segunda é o uso do espaço público para fins privados e segregacionistas – a praça é um templo do mundo que recusa proprietários.A rua não é um templo religioso, e a Guarda Municipal não é a encarnação detorquemadas medievais;
seu papel é defender o patrimônio do município. Por fim, mas nãomenos importante, o Estado não reprime com força policial beijos entre duas mulheres. A verdade é que o Estado nem discrimina nem algema lésbicas por estarem no mundo.
O quadro é triste. Se a festa cultural financiada com dinheiro público era “um culto”,como descreveu Feliciano,é urgente uma investigação sobre a moralidade do financiamento. Se era uma festa cultural, nela todas as expressões da diversidade deveriam ser bem-vindas – alguns estavam lá para ouvir as pregações do pastor, outros para se divertir, outros poucos para protestar. O direito à liberdade de expressão é fundamental em nossa ordem política, e as duas moças, além de se beijarem, protestavam.Se há crenças religiosas que consideram o beijo de duas mulheres um ato de vilipendiação ou de baderna – palavras do pastor Feliciano –, essa é um liberdade de pensamento com limites claros de expressão pública. Jamais as duas moças poderiam ser reprimidas com a força policial por suas preferências existenciais. Jamais poderiam ter sido objeto de perseguição por um microfone financiado com recursos públicos.
Feliciano descreveu a praça como um“ ambiente religioso”. Seu argumento para perseguir as moças, convocar a polícia e expulsá-las da vida pública foi o de inadequação espacial: as moças estariam no lugar errado, na hora errada, fazendo algo muito errado. Ora, se há algo equivocado nessa história é que a praça não é um espaço religioso; portanto,o erro de geografia não foi das garotas,mas de quem se apropriou da rua comose fosse um templo. Mas a discussão sobre pessoas certas nos lugares certos é realmente interessante quando proposta pelo pastor, que se crê representante da democracia e é o principal líder dos interesses das minorias n Câmara dos Deputados. Se há mesmo pessoas certas para lugares certos, como entender que ele lidere a Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados?
Feliciano pediu que as lésbicas,os gays ou os transexuais o esquecessem. “Eles estão me fortalecendo. Deviam ter um pouquinho de juízo e me esquecer”, disse o deputado- pastor imediatamente após as garotas serem algemadas em uma viatura policial. Se quer mesmo ser esquecido pelos grupos que não suporta que estejam na praça, Feliciano deve esquecer as próprias pretensões políticas, pois não sabe conviver com o espírito democrático. Seu papel como líder da Comissão de Direitos Humanos é conviver com os fora da norma religiosa.
Ao contrário do que o deputado-pastor imagina, a sociedade brasileira não é um evento gospel que o reconhece como soberano, nem as meninas são como “cachorrinhos latindo”, a metáfora que escolheu para descrevê-las enquanto eram arrastadas pela polícia. Não são latidos o que ouvimos nos últimos dias sobre o incidente, mas vozes de resistência à discriminação.
Vivemos em uma democracia em que lésbicas têm o pleno direito de viver na praça, de beijar-se em eventos culturais e de não temer a força das algemas como repressão religiosa.
DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA
DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS
*Mariadapenhaneles
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