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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, abril 02, 2015

O segredo nazista brasileiro

 (Foto: Carlos Fonseca/ Editora Globo)

Édécada de 1930 no Brasil. Um time de futebol com jogadores negros ostenta uma bandeira com o Cruzeiro do Sul — e a suástica nazista. O gado da fazenda está marcado com o mesmo símbolo. Um retrato de Hitler está na parede do casarão. A foto do tal time foi encontrada na fazenda Cruzeiro do Sul, cujo nome explica a constelação que a nomeia. Mas e a suástica?
Campina do Monte Alegre é uma cidade de 5.000 pessoas, no interior de São Paulo. Ali, o rancheiro José Ricardo Rosa Maciel, o Tatão, descobriu um segredo que ficou escondido por 70 anos. “Eu cuidava dos porcos numa casa antiga. Um dia, eles quebraram uma parede e escaparam. Notei que os tijolos tinham caído. Foi um choque enorme.” Os tijolos tinham a marca da suástica. A parceira de Tatão, Senhorinha Barreta da Silva, estudava na Universidade de São Paulo e levou uma das peças para seu professor de história, Dr. Sidney Aguilar Filho.
Tatão mostra os tijolos da fazenda (Foto: Gibby Zober)

“Fui até a fazenda, onde encontrei uma profusão de insígnias com a suástica, não só nos tijolos, mas em fotografias da época, marcas nos animais, bandeiras. Também achei uma história paralela sobre a transferência de 50 meninos de dez anos que foram tirados de um orfanato no Rio de Janeiro e levados para Campina do Monte Alegre em 1933. Nessas duas histórias, estava a presença da ideologia nazista”, afirma Aguilar Filho. 
Depois de oito anos de pesquisa, apresentou em 2011 a tese “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945)”. As crianças foram tiradas do orfanato Romão de Mattos Duarte, da Irmandade de Misericórdia. O primeiro grupo, com dez, saiu em 1933, depois mais 20 e outro de 20. Elas ficaram sob a custódia de Osvaldo Rocha Miranda, um dos cinco filhos do industrial Renato Rocha Miranda. A família era dona do famoso Hotel Glória e estava entre as mais ricas e influentes da então capital do Brasil. Com outros dois irmãos, Osvaldo era membro da Ação Integralista Brasileira, organização extremista de direita.
“Minha pesquisa se focou em que sociedade era essa, que Brasil era esse?”, explica Aguilar Filho.  “Era uma cultura extremamente racista e preconceituosa. Na geração seguinte à abolição da escravatura, a estética era extremamente marcada pelo racismo. Com os olhos de hoje, é muito chocante”, diz Aguilar Filho.
EUGENIA BRASILEIRA
O artigo 138 da Constituição da época estabelecia que era função do Estado promover educação baseada em crenças eugênicas, ele aponta. No fim dos anos 1930, a Alemanha era o principal parceiro econômico do Brasil. Havia também, como consequência, fortes laços políticos, ideológicos e culturais. Aqui estava o maior partido nazista fora da Alemanha, com mais de 40 mil afiliados.
Aloysio da Silva e Argemiro dos Santos estavam na primeira leva. “Eles relatam um tratamento muito rígido, sujeito a punição física, sem permissão para deixar a fazenda sozinhos ou sem autorização, trabalho intensivo, com pouca ou nenhuma remuneração. Aloysio se refere a uma infância roubada e fala de escravidão. Argemiro não usa a palavra, mas confirma o uso sistemático da palmatória, violência física, chicotadas e punições”, afirma Aguilar Filho.
O time de futebol do Cruzeiro do Sul ergue a bandeira com o símbolo nazista (Foto: Reprodução)

Maurice Rocha Miranda, sobrinho bisneto de Otavio e Osvaldo, nega que as crianças fossem “escravas” e diz que sua família deixou de apoiar os nazistas muito antes da Segunda Guerra.
Mas a história dos dois sobreviventes — que nunca mais se encontraram — é curiosamente similar. Ainda vivendo perto da Cruzeiro do Sul, Aloysio, 90, relembra quando foi levado do orfanato. Com doces e “lábia”, Osvaldo disse que daria a eles uma nova vida. “Ele prometeu o mundo. Mas não era nada daquilo. Nós recebemos enxadas, uma cada. Para tirar o capim, para limpar a fazenda. Fiquei preso porque me enganaram. Fui trapaceado. Esquentou meu sangue”, diz Aloysio. Os meninos eram chamados por números. Aloysio era o 23. Dois cães de guarda mantinham os garotos comportados.
Outro sobrevivente, Argemiro dos Santos, 89, vive em Foz do Iguaçu. “Na fazenda havia fotografias de Hitler, e o tempo todo você era forçado a saudar com o ‘anauê’, a saudação alemã”, ele diz. O “anauê” era, na verdade, a saudação dos integralistas, gesto idêntico ao “sigheil” da Alemanha hitlerista. Argemiro escapou da fazenda para se juntar à Marinha, indo à Europa lutar contra o führer cujos admiradores foram seus captores.

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