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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, janeiro 11, 2013

“Desinformação é a arma de guerra do Pentágono”

 

A jornalista Stella Calloni alerta que, seguindo o script de Washington, Grupo Clarín ataca a Ley de Medios da Argentina
Para Stella, a Lei de Meios da Argentina é a mais democrática  participativa que se votou no país e em toda a América Latina 
 Foto: Leonardo Wexell Severo
Aos 77 anos, Stella Calloni luta o bom combate, energizando com alegria tudo ao redor. Nos recebe em sua casa para falar sobre a Lei de Meios Audiovisuais da Argentina, a Ley de Medios.
A sala em que nos recebeu, repleta de quadros e imagens de diversos países, é um cenário internacionalista e integracionista perfeito para nossa conversa. O tema é o 7D (sete de dezembro), que colocou o debate sobre a comunicação na ordem do dia e mobilizou toda a sociedade argentina. Neste dia, o maior conglomerado de comunicação do país vizinho, o Grupo Clarín, deveria ter apresentado seu plano de adequação para desfazer-se de seu monopólio e adequar-se à lei. Todos os demais grupos de mídia o fizeram até a data, mas por uma ação judicial do Clarín, acolhida por uma corte de Justiça, o 7D não se consumou e a batalha pela democratização da palavra continua.
Escritora e jornalista, Stella desvendou a Operação Condor e tantos crimes macabros cometidos pelo imperialismo e seus testas-de-ferro no Sul do Continente. Stella estudou a fundo a lei dos meios e afirma categoricamente que se trata da “mais democrática e participativa da América Latina”, e tem um “significado especial para a conquista da soberania efetiva e o avanço da própria integração”. Frente ao festival de mentiras, calúnias e omissões que proliferam na imprensa contra a presidenta Cristina Kirchner e a nova lei, Stela nos convida a uma reflexão sobre quem se beneficia do caos na comunicação: “A desinformação é uma arma de guerra do Pentágono”.
Da mesma forma que O Globo, no Brasil, o Grupo Clarín foi claramente beneficiado pela ditadura. Como isso se deu?
Em 1978 a ditadura persegue a família do banqueiro e dono da empresa Papel Prensa, Davir Graiver, (empresa que detinha o monopólio da fabricação de papel jornal) acusado de trabalhar com o grupo guerrilheiro Montoneros. O proprietário morreu num estranho acidente em 1976, no México, e nunca se pôde achar o corpo nem nada. A suspeita é que o assassinato tenha sido executado pela CIA e por grupos secretos que trabalhavam com a ditadura. Então, numa manobra entre a ditadura, o Diário Clarín, o La Nación e o diário La Razón, que já não existe mais, fizeram o “acordo” com Graiver. Tudo assinado e sua esposa Lidia Papaleo de Graiver, que regressou ao país com sua filhinha de dois anos, foi detida e torturada num centro clandestino. Nessas condições, teve que assinar a “venda” da Papel Prensa. A “compra” foi por um montante que era nada e ocorreu, evidentemente, mediante extorsão. Do total do patrimônio, 80% ficaram para os três jornais e uns 20% da empresa para o Estado. Foi assim que o Clarín e o La Nación começaram a formar seu monopólio, pois quem tem o poder do papel jornal na mão tem o poder da distribuição deste papel. Em 1980, o regime da ditadura militar (1976-1983) dita por decreto a lei de radiodifusão que, neste momento, já concebia a comunicação como uma mercadoria. A ditadura havia aberto então a porta para a conformação de grandes grupos monopólicos.
Terminada a ditadura, o presidente Raúl Alfonsín chegou a questionar esta anomalia?
Depois de 1983, após a Guerra das Malvinas, cai a ditadura e Raul Alfonsín chega à Presidência. Em 1984 ele começa a se dar conta que a lei de meios da ditadura precisaria mudar. Então é desatada uma grande campanha do Grupo Clarín contra Alfonsín e nada avança. É esta a lei que se encontra em vigência até agora.
Como inicia esse movimento pela democratização da comunicação?
Nos anos de 1990 começa um trabalho coletivo de universidades, diretórios estudantis, profissionais, movimentos sociais e sindicais, sobretudo de profissionais de imprensa, entre eles a União de Trabalhadores de Jornalismo de Buenos Aires. Iniciam o debate sobre o tema da concentração de poder nos meios de comunicação. Vale lembrar que, em 1989, o ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) privatiza tudo, além de um monte de meios de comunicação, escancarando as portas para a possibilidade de se comprar a quantidade de licenças que quisessem. Isso possibilita que, em 1995, quando começou a campanha para mudar a lei, Clarín já tivesse se tornado um grupo monopólico.
Qual o tamanho desse monopólio?
Beneficiado com esta lógica privatista, no ano 2000, Clarín já detinha 240 licenças, os canais 13, Toda Notícia, Volver, Rádio Mitre AM, 80 FM, Multicanal, Datamarket, por meio dos quais controlava quase todo o país, além de imprimir o principal diário, o Clarín, e a Olé, que é uma revista esportiva. Havia acumulado, portanto, bem mais do que todo o resto dos grupos.
No Brasil, o grupo Folha emprestava seus automóveis para a repressão. De que forma o Grupo Clarín agiu?
Este é um problema. O Clarín e os grandes meios colaboraram com a ditadura publicando como “enfrentamento” o assassinato de militantes pelos grupos policiais. É a velha história: a mídia fazia o jogo do poder econômico, dos latifundiários, dos banqueiros, das multinacionais, que manipulavam em todo o continente os meios de comunicação, ligados aos Estados Unidos, dependentes deles. Assim, quando os EUA viam que seus interesses estavam sendo contrariados, e que precisavam dar um golpe e invadir um país, utilizavam a mídia local. Foi assim na invasão à Guatemala, foi dessa forma que converteram o herói nicaraguense Augusto César Sandino em bandido. Por isso atacam tanto atualmente o presidente equatoriano Rafael Correa. O que está em jogo é a defesa dos interesses econômicos. Concebem a informação como mercadoria e a liberdade de expressão como liberdade de empresa. O que potencializou esse movimento foi o furacão neoliberal dos anos de 1990.
Você se refere à crise que vitimou bastante a economia Argentina?
A Argentina foi um dos países mais gravemente afetados pelo neoliberalismo. Acabaram os trens no nosso país. É uma coisa única no mundo, porque tínhamos cobertas nossas maiores extensões. Com isso morreram vários povoados no interior. Foi um retrocesso nos princípios iniciais da República, foram quebradas muitas empresas. O governo chegou a cortar publicidade para quebrar empresas de comunicação, a fim de que viessem os estrangeiros e seus testas-de-ferro, o que foi conformando um poder hegemônico. Foram apoderando-se, no caso da Europa, das agências de notícias, mancomunadas com interesses privados a tal ponto que perderam totalmente a espécie de independência que ainda tinham. Vocês como brasileiros, nós como argentinos, lembramos que quando tivemos as ditaduras recorríamos àquelas agências para fazer denúncias. Hoje elas são parte de um só discurso midiático.
Como avalia o papel dos novos governos populares nesta batalha pela liberdade de expressão?
Devido às mudanças que ocorreram na América Latina, vivemos o pós-neoliberalismo – ainda que este sistema não esteja completamente enterrado. O fato é que surgiram governos que expressam uma vontade popular totalmente distinta. Estes governos surgem das lutas populares nas ruas, nas estradas, e ressignificam a tragédia do neoliberalismo nos setores mais renegados e excluídos entre os excluídos. Afinal, os neoliberais concebem o desemprego como um disciplinador social, por isso, trataram de reduzir os sindicatos, debilitaram as defesas dos trabalhadores, desregulamentaram nossas economias. E a resposta veio da grande massa popular, dos piqueteiros na Argentina, por exemplo. O mesmo aconteceu na Bolívia, e na Venezuela com o Caracaço em 1989, que foi a primeira rebelião contra o sistema neoliberal produzida no continente. Os novos governos que surgem, como o de Hugo Chávez, vêm quando os países estavam afundados no abismo. Daí tantas rebeliões populares e a entrada em cena de Evo Morales na Bolívia, Nestor Kirchner na Argentina, Lula no Brasil, Manuel Zelaya em Honduras, a volta de Daniel Ortega na Nicarágua. São governos frutos destas rebeliões que mudam o mapa da América Latina, em contraposição à lógica das ditaduras que nos implantaram os Estados Unidos. Começa então um processo de integração e unidade. Isso dá um salto além do processo de integração econômica, como havia sido inicialmente concebido, para um processo de emancipação nacional, porque estamos em um processo de independência, ainda não temos nossa independência totalmente assegurada.
Como profissional que acompanha o debate sobre a democratização da comunicação há muitos anos, qual a sua avaliação sobre a Ley de Medios?
A Lei de Meios da Argentina é a mais democrática e participativa que se votou no país e, creio, em toda a América Latina. As diferentes organizações estão trabalhando nela, constantemente aperfeiçoando a proposta há 22 anos. Há uma grande aprendizagem, fruto de um acúmulo. A questão da mídia, pela sua capacidade de interferência na realidade, de pautar governos e influir no comportamento social, ganhou ainda maior relevância para a própria democracia.
Claro. Se antes existiam três meios potentes que destruíam um governo, neste período histórico temos milhares de repetidores destes meios potentes que têm um poder tão grande que agora são concebidos pelo Pentágono como arma de guerra. A desinformação hoje é uma arma de guerra. Massivamente pode-se destruir um mandatário, convertê-lo em ditador, sustentar uma mentira como as armas de destruição em massa no Iraque, uma mentira atroz como a usada contra a Líbia. Muammar Kadafi nunca bombardeou seu povo. Não deixaram nada em pé na Líbia. Então a mídia foi usada recentemente em quatro guerras coloniais: Afeganistão, Iraque, Líbia e, agora, a Síria, onde também estão produzindo devastação em larga escala. Temos também a questão grave dos bombardeios e do cerco a Gaza, na Palestina, países que foram divididos como o Sudão, e ameaçados, como o Líbano e o Irã.
Vejam como isso se reflete aqui na América Latina com a nova ofensiva dos grandes conglomerados de comunicação sobre os governos da região, tentando destruir a integração que conseguiu vencê-los. Nossa integração conseguiu parar golpes de Estado como o dado contra Evo, apoiou [Rafael] Correa e isolou os golpistas em 2010, desconheceu o governo ditatorial de Honduras e tomou uma decisão, como no caso do Paraguai, cumprindo com o regramento do Mercosul que defende a democracia verdadeira. Concebemos e reafirmamos a democracia como é: uma grande participação popular, e pela primeira vez os Estados Unidos caíram na sua própria armadilha. Não diziam que o que valia era o voto na urna? Pois pelo voto nossos povos afirmaram um caminho independente do governo de Washington. Como a vontade popular é favorável à independência, temos uma verdadeira guerra instalada no Continente, a guerra dos meios.
Voltando à Argentina, conte-nos mais sobre a guerra que está sendo travada pela mídia contra o governo de Cristina.
Na Argentina há uma desinformação enorme. Em 2008 quando o governo quis colocar um imposto para a venda da soja, pois havia uma entrada enorme de dinheiro, foi produzida uma tentativa de golpe de Estado. A paralisação das rodovias do Mercosul era um golpe estratégico. Conseguiu-se superar isso, mas a desinformação era tão grande que começou a confundir setores da sociedade, que são ainda cativos dos grandes meios, porque nenhum meio estatal tem o poder comunicacional deles, que abarcam todo o país. Com 240 licenças, o Grupo Clarín tem rádios de longo alcance em cada província, chegando até a Terra do Fogo, a mais distante. Conhecemos pela história de Goebbels e do nazismo, que tudo o que é repetido todos os dias vai formando uma verdade, uma opinião, que pode ser absolutamente equivocada. Como ocorreu com o povo alemão, as informações de Goebbels foram levando os alemães à sua própria destruição, pois não conseguiram ver que era falsa a mensagem.
A destruição da consciência, de países e povos, acontece via desinformação?
Aqui a desinformação é tamanha que ao ler o Clarín, da primeira à última página, são todas notícias negativas sobre a lei de meios. Chegou a um ponto que nunca havíamos chegado, de se oporem ao governo quando este defende a questão das Ilhas Malvinas, que são estratégicas não só para Argentina, como para toda a América Latina, porque senão teremos as maiores bases estrangeiras já instaladas, com alcance para o Brasil, para toda a região. Diante desta ameaça real, esses meios começam a desacreditar esta vontade, esta posição do governo, dizendo que é preciso respeitar os habitantes instalados no lugar, trazidos da Grã Bretanha. Querem justificar a falta de soberania, defender uma colônia a 14 mil quilômetros da Grã Bretanha, instalada em águas territoriais argentinas.
Esse é um comportamento que vem de longa data?
Veja, o La Nación é da família Mitre, oligárquica do passado, que sempre combateu os governos populares, tendo sido chaves na derrubada de Perón, em 1955. São sociedades cativas que se acostumaram a ter muito poder através desses meios. Mentem para este público dizendo que o jornal vai deixar de sair no dia seguinte à entrada em vigor da Ley de Medios. Mas no caso do jornal não há nenhum problema, pois a lei não tem alcance para os meios escritos. Isso é absolutamente falso. Eles podem ficar com até 24 canais e 10 rádios, mas não poderão ficar com as 240 concessões irregulares, porque isso é monopólio. A lei se rege também por regras da Comissão Interamericana de Direitos Humanos que afirma que não pode haver monopólios informativos porque eles restringem a liberdade de expressão dos países. Então nos perguntamos: por que esta lei não está sendo cumprida pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP)? Porque ela representa os donos dos meios.
No caso argentino, após amplo debate, aprovada pelo Executivo e pelo Legislativo, a lei foi obstaculizada pelo Judiciário. O que deve acontecer agora?
A lei entrou como projeto do governo, apresentada por todas estas organizações. Os deputados estudam a questão e a lei é aprovada por maioria pelo governo e pela oposição em outubro de 2009. De imediato, o Grupo Clarín começa a colocar medidas cautelares. Pressiona por uma medida cautelar para o artigo 161, que regula os monopólios midiáticos, que não deveriam mais existir e que todos os grupos deveriam se adequar. A lei não é nenhum ataque a um meio determinado. Tanto é assim que no dia 6 de dezembro, um dia antes do prazo, 19 grupos já haviam entregado seus planos de adequação para o governo. Havia um acerto que no dia 7 de dezembro a Autoridade Federal de Serviços Audiovisuais de Comunicação (AFSCA) devia apresentar um plano de adequação para os que não cumprissem o prazo. Então uma Câmara Civil e Comercial integrada por juízes que têm até relação familiar com o Clarín, um juiz que foi convidado pelo grupo para ir a Miami fazer um debate contra a nova lei, suspende seu efeito.
Uma decisão em causa própria?
É impossível que uma pessoa possa ser juiz e parte, mas aconteceu. Um monopólio restringe a liberdade de informação e o Estado deve tomar medidas contra a intenção monopolista. E foi obstaculizado por uma decisão judicial. Deparamos-nos com uma verdade que ninguém quer dizer em toda a América Latina, na Argentina, no Brasil: a Justiça está impregnada pelo passado. Ainda restaram muitos juízes da ditadura, do poder econômico que veio depois, juízes que colaboram ativamente com as oposições locais.
Uma guerra pela democratização da comunicação. Dessa forma, como avalia o papel desempenhado pela SIP?
A luta pela democratização da mídia é a mãe de todas as batalhas. A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), que é a sociedade de todos os donos da mídia do continente, que tem grande influência dos Estados Unidos, está contra a Ley de Medios porque ela favorece a pluralidade de vozes, estabelece um limite para o número de licenças que cada grupo de empresários pode ter. A nova lei argentina determina que o Clarín não pode manipular tantos sinais, criou a Autoridade Federal de Serviços Audiovisuais (AFSCA), determinou um máximo de 24 licenças de televisão por cabo e 10 de rádio AM ou televisão aberta para cada grupo, reconheceu o direito à comunicação com identidade dos povos originários, entre outros avanços. Na manhã do dia 8 de dezembro, começou a funcionar a primeira televisão mapuche e há mais de 20 rádios que passaram a ser feitas pelos próprios povos originários. Estou contentíssima com isso.
Sem romper com o monopólio do Clarín não é possível que a lei entre em vigor?
A lei indica que tudo devia começar com os aspirantes aos canais apresentando-se como cooperativas. E assim foi feito. Mas se não se rompe o monopólio, não tem como distribuir. Este é o problema. Já se permitiu a abertura de novas rádios em alguns lugares, apoiou-se pela primeira vez o desenvolvimento de pequenas e médias empresas que poderão ficar responsáveis por um canal de cabo, Cinquenta universidades já podem ter a sua própria televisão, foram liberadas mais de 365 licenças de AM e FM e devem sair outras 800 solicitações de distintos setores populares para rádio. Isso já está sendo cumprido, com licenças para organizações sem fins de lucro, canais educativos, de saúde, 1.150 frequências para rádios municipais, se abriram mais de 130 rádios em escolas e mais de 20 para povos originários. Mais de 50 cooperativas de serviços públicos em todo o país já têm sua licença e outras 100 as solicitaram. Isso dá uma ideia do que vai acontecer no dia seguinte ao que o monopólio acabar.
Como a nova legislação aborda a questão da publicidade?
A lei exige que a publicidade incentive a produção local. Assim se produziram mais de duas mil horas de conteúdo televisivo desde que chegaram os planos de fomento do Estado nacional e mais de 3.500 projetos foram apresentados em todo o país. Com recursos, 26 das novas séries de televisão foram realizadas nas províncias com atores e técnicos locais. A indústria audiovisual gera mais de 100 mil postos de trabalho por ano em todo o país, número que pode ser bastante ampliado com a diversificação estimulada pela lei. As pequenas e médias empresas (Pymes) já contam com mais de 2.800 horas diárias de programação e geram mais de seis mil postos de trabalho. Esta informação obviamente não é divulgada pela mídia, mas as pessoas necessitam ter a dimensão do seu significado.
A grande mídia esconde os benefícios da nova lei, mas seus defensores conseguem dialogar sobre a sua relevância para o avanço da democracia?
Dizem que ela é necessária, falam da democratização, mas não são divulgados fatos concretos, não se demonstra a importância de fato. O artigo 161 é importantíssimo porque, como já disse, sem mexer no monopólio não tem como distribuir. Então a decisão da Corte em favor do Clarín está interferindo no processo. Os demais grupos de mídia estão dispostos a cumprir a lei, mas a SIP vem à Argentina apoiar o grande monopólio, num dos maiores atos de intromissão nos assuntos internos de um país. Aqui, no dia 22 de maio, a Corte Suprema fixou que no 7 de dezembro venceria a medida cautelar. Agora, com o apoio de alguns juízes, conseguiram novamente protelar. O Clarín está burlando a legislação com acompanhamento externo e o Estado está lutando contra a velha justiça que responde ao poder econômico.
Em sua opinião, o que temos pela frente?
Em primeiro lugar, precisamos tornar mais didáticas as denúncias contra o grupo monopolista. Se o Clarín continua sem cumprir a lei, o Estado está obrigado a chamar concursos públicos. As licenças que excedam o mínimo estipulado pela lei devem ser entregues a novos titulares. A obrigação do Estado é chamar o concurso. Se não adequar-se ao processo, em sua luta equivocada, o Clarín terminará favorecendo os setores populares. Inclusive agora está em curso um processo judicial pelo caso da fábrica de papel jornal, onde os antigos donos estão denunciando como lhes tiraram seu patrimônio, de forma ilegal e indevida. A atuação é juridicamente reprovável porque se fez com pessoas detidas. Além disso, houve o descumprimento do que dispunha a lei quanto ao percentual de ações que deveria ter ficado com o Estado e que acabou sendo apropriado pelos grupos privados. O monopólio também amplia o poder e os lucros do Clarín, que obriga as demais publicações a pagarem um fundo para que possam ser distribuídas nas bancas. O Estado tem dito e repetido que não vai expropriar de nenhuma maneira, nem vai estatizar. Trata-se de garantir a pluralidade de vozes, algo que nunca houve. Ao contrário, uma quantidade de meios foram fechados durante a ditadura, inclusive com bombas, como o Diário Sur e o diário La Calle, do Partido Comunista. Há mais de cem jornalistas argentinos desaparecidos e 50 assassinados. Mas sobre isso a SIP não fala, como nada tem dito sobre o que está ocorrendo em Honduras onde em duas manifestações realizadas pela oposição foram espancadas equipes inteiras de televisão.
E como é possível romper com este cerco midiático?
Precisamos fazer cumprir o que diz a Corte Interamericana: os monopólios de comunicação cerceiam a liberdade de expressão. Quando os governos querem atuar para democratizar a palavra, se fazem de desentendidos. A informação é uma arma real para o poder hegemônico, uma arma para destituir governos. Uma arma tão real que muitas das notícias são fabricadas no próprio Pentágono, como as do Oriente Médio, e repetidas em todo o mundo. Imagine o poder que significa que, em todo o mundo, na mesma hora, a repetição da mesma coisa. Isso amplifica de uma forma perversa, eu diria terrorista, a desinformação. Não se respeita o direito dos povos a uma informação verdadeira, que ajude a população a ter mais educação e cultura. A isso se agrega os entretenimentos que são o maior modelo de desculturação que tiveram nossos países nos últimos anos. E isso é mais grave porque chega onde não há um jornal. Está em frente à televisão, está absorvendo anti-valores.
No Brasil de Fato

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