Imagens latinas: entre Deus e o diabo
Via Brasil de Fato
Entre
o popular do Vaticano, representado por Bergoglio, e o popular
bolivariano, representado por Chávez, há uma distância colossal
Roberta Traspadini
Dois grandes acontecimentos marcaram o sentir e o sentido político da América Latina e do mundo neste mês de março.
Por
um lado, a morte de Chávez foi apresentada, pela onipotente mídia
burguesa, como o fim da tirania na América Latina, restando a morte de
Fidel Castro, para pôr fim ao ciclo comunista no continente.
Por
outro lado, a eleição do novo papa Bergoglio é apresentada como uma
“nova” relação de poder popular da Igreja Católica, cuja imagem
imaculada de São Francisco de Assis aparece como a significativa tônica
do que virá na ação do novo líder do Vaticano no mundo, a partir da
suposta historia humanista deste sujeito com o povo argentino.
Estamos
diante de duas espetaculares imagens-fetiches, midiatizadas de forma
antagônica: a construção do processo venezuelano como prisão perpétua
comunista, caso Chávez se mantivesse vivo e no poder; a libertação
teológica franciscana, a partir da gigantesca aparição do novo Papa,
cujo poder é, segundo ele mesmo, humanista e popular.
Chega
a ser anedótico, o profético projeto burguês-cristão de sociedade:
América Latina figura entre o diabo e o salvador. Imagens cujo sentido é
fazer o povo tomar partido entre um projeto que mata (comunismo), e
outro que ressuscita (cristianismo).
Dessas
imagens, os donos do poder vão reconfigurando, aos poucos, através de
seus meios de comunicação, um histórico dever frente a noticia, em que a
produção do senso comum atinge altos níveis de perversão, criada pelos
formadores críticos hegemônicos.
Por trás da
morte de Chávez, encobre-se uma situação concreta de mudança social,
política e cultural em que o povo venezuelano, o reelege e legitima como
líder, em plena despedida física, renovando os votos políticos de
participação popular. Uma constatação que não combina com a fantasia de
diabo pintada pela grande mídia. Ante os fatos e o mito, aparece a
típica imagem do monstro comedor de criancinhas.
Oculta-se
o real e redobra-se a condição de revelar mentiras, como se fossem
verdades. É o sentido crítico burguês dando a tessitura da restauração
social, a partir de uma velha-nova situação política na região.
Por
trás da eleição de Bergoglio, a real situação de crise da Igreja
Católica na América Latina e no mundo, há décadas, é encoberta. O
crescimento do ateísmo e de outras religiões, além dos fatos cotidianos
de abuso de poder de padres, bispos e outros sujeitos da cúpula política
do Vaticano, desaparecem enquanto fato social concreto.
O
discurso de consolidação de uma política evangelizadora mais humana,
representada por um líder religioso latino-americano, cuja centralidade é
a de cuidar dos pobres, mostra a perigosa relação de poder manipulador
da Igreja no cotidiano do povo latino-americano.
E
a reprodução fetichista das imagens continua: a despedida do povo
venezuelano e latino a Chávez não apareceu na mídia dominante, mas a
imagem da eleição do novo Papa segue cotidianamente presente.
Deveríamos
fazer algumas perguntas: Por que o processo eleitoral, democrático e
popular de Chávez, quando aparece, figura como despótico? Isto não é bem
diferente daquilo que ocorreu na Venezuela? Por que uma eleição, cujo
processo é apresentado através da cor da fumaça, é anunciada pela grande
mídia, com a maior expectativa de mudança para a humanidade? Qual o
cheiro da fumaça?
Estas perguntas exigem um
aprofundamento sobre o sentido da ação política no continente e o perigo
de discursos que não enveredam para práticas que os legitimam.
Entre
o popular do Vaticano, representado por Bergoglio, e o popular
bolivariano, representado por Chávez, há uma distância colossal: o
popular dos números x o popular do protagonismo social.
O
popular do Vaticano está centrado no aumento do número de fieis, há
décadas em queda no continente latino e no mundo. Um aumento
quantitativo que espelhe a reprodução dos valores cristãos, que estejam
em consonância com seu discurso antidemocrático de não participação da
mulher na política, de integrar os jovens em missões evangelizadoras, e
de consolidação de um projeto de sociedade que não permita questionar o
dinheiro, o banco, o poder ditador da forma hierárquica como se
consolida a economia e a política na história desta religião.
O
popular bolivariano tem como centro retornar ao povo o que
historicamente lhe foi tirado pelo domínio burguês sobre suas vidas: a
participação popular na política, a retomada das empresas públicas
estatais, a melhoria das condições de vida de uma sociedade
perversamente desigual, além da principal ferramenta de democratização
dos meios de comunicação.
Entre o mito de deuses
e diabos, restam apenas seres humanos repletos de contradições. Das
contradições manifestas, devemos nos posicionar a favor da historia
vivida pelo povo venezuelano que, não só chora, como revigora a luta
aberta por Chávez e Fidel, sobre a vital construção do projeto popular
na América Latina, contra a continuidade do despótico poder divino
projetado há séculos sobre o continente.
Roberta Traspadini é professora da ENFF e da UFVJM, e integrante da Consulta Popular.
*GilsonSampaio
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