Paulo Moreira Leite, ISTOÉ
A manobra protelatória que permitiu o
encerramento da sessão de quinta-feira sem o voto decisivo de Celso de Mello
foi um aperitivo do que virá por aí. Os pronunciamentos chegaram a ser
arrogantes. O esforço para ganhar tempo de forma bisonha, teatral, foi ofensivo
num tribunal onde a denuncia de chicanas é feita com tanta facilidade.
Confesso que fiquei perplexo ao assistir
Marco Aurélio Mello virar-se para Celso de Mello e fazer uma advertência nestes
termos:
“Estamos a um voto. Que responsabilidade,
hein, ministro Celso de Mello.”
É ofensivo. Parece um professor
dirigindo-se a um discípulo.
Parece que a responsabilidade de Celso de
Mello não é idêntica a de cada um dos onze ministros que tomaram a decisão.
Para empregar uma imagem: ele vai dar um voto.
Não vai cobrar um pênalti.
O esforço para colocar a decisão sobre os
ombros do decano é apenas uma tentativa de diminuir a firmeza de suas
convicções.
O que se pretende é acovardar Celso de
Mello diante de um voto que é tão legítimo como o de todos os outros.
Sua travessia até quarta-feira será longa. Não
consigo imaginar as pressões que irá receber durante cinco dias para recuar, deixar
de lado o que escreveu, negar aquilo em que acreditou.
Até porque contraria o senso comum, aquela
verdade dos donos da verdade, aquela mentira que tantas vezes repetida deixa de
provocar estranhamento, é um voto com um valor especial.
Isaiah Berlim, um dos pensadores mais
argutos do século XX, dizia quem os bons princípios são aqueles que contrariam
nossos interesses.
Um dos mais duros adversários de José
Dirceu e do governo Lula, capaz de criticá-los com palavras que considero
erradas e injustas, Celso de Mello está mostrando que é preciso separar os
princípios do Direito das convicções políticas.
Nada fará para dar conforto a seus
adversários políticos.
É muito provável que, com a aprovação dos
embargos infringentes, o ministro se recuse a votar pela inocência de José
Dirceu.
Ele concorda com a noção de que o governo
do PT abrigou uma organização criminosa.
A discussão não é esta, no entanto. O
decano sabe disso.
Não deixará de dar um voto que considera correto
só porque eles poderão beneficiar-se dessa decisão.
Essa foi a mensagem que deixou, ao lembrar
que os interessados em adivinhar seu voto só precisam ler sua declaração de 2
de agosto de 2012. Há pouco mais de um ano, através de seus advogados, Celso de
Mello disse aos réus da ação penal que eles teriam direito aos embargos
infringentes – que iriam funcionar como um indispensável segundo grau de
jurisdição para quem fora impedido de um julgamento na primeira instância.
Sua postura, assim, é uma forma de ser leal
a si próprio – e a todos que deram fé a suas palavras.
Num Supremo politizado, que transformou
convicções políticas em sentenças jurídicas, essa postura serve como uma aula
sobre a necessidade de recuperar a Justiça como uma força que permite a
comunhão de todos os homens.
É dessa forma que um ministro afirma
valores. Tantas vezes mencionado por Celso de Mello no julgamento da ação
penal, o ministro do STF Aliomar Baleeiro era um udenista convicto e um
conservador sem retoques. Mesmo assim, foi capaz de defender os direitos de
frades franciscanos acusados de participar da luta armada sob orientação de
Carlos Marighella, mandando tirá-los da cadeia onde o regime mantinha
trancafiados. Baleeiro demonstrou coragem num tempo em que a maior ameaça ao
bom Direito vinha do Estado, da ditadura.
Os tempos são outros e muitas verdades mudaram.
Não há por que comparar personagens, nem situações.
As pressões contra o Supremo vêm de um
circo produzido por aqueles veículos de comunicação que abandonaram os bons
princípios do jornalismo – pluralidade, isenção, respeito aos fatos – para
organizar um espetáculo que deve ser unilateral como um anuncio de sabonete,
definitivo como um pelotão de fuzilamento, catártico como um final feliz de
novela.
Daí a importância de uma declaração de Luiz
Roberto Barroso, ao dizer que não toma decisões pensando na “manchete do dia
seguinte.”
Ao tentar impedir o ministro de votar
conforme sua consciência, seus adversários querem travar uma luta que ao longo
da história só engradeceu juízes, advogados e cidadãos comuns –- o direito de
todos e de cada um a uma defesa ampla, a defender sua inocência até que se
prove o contrário. É isso, e tudo isso, que está em jogo no STF.”
*Saraiva
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