Jardel Dias Cavalcanti
Para quem não teve a oportunidade de ver no calor da hora as criações de Zé Celso, esta é uma oportunidade única, que deve ser louvada. Um empreendimento cultural desta força e dimensão não pode ficar longe das escolas de teatro, dos amantes da arte, de quem quer entrar em contato com uma das maiores forças vivas do teatro brasileiro: Zé Celso e sua Companhia.
Nestas peças encontra-se o espírito do teatro de Zé Celso. Criador avesso às macaqueações do teatro burguês, o diretor retoma a ideia do teatro-templo das forças dionisíacas. Reunindo todas as forças místicas, musicais, culturais dotadas de apelo irracional, Zé Celso cria suas obras a partir de uma prática que nos faz pensar em antigos rituais pagãos, no carnaval, nas festas das colheitas regadas a vinho e bacanais.
Mobilizando o espírito herético das músicas afro, do rock, do samba, do brega, seu teatro operístico-anárquico transforma corpos, cenários, textos e público em partícipes de um ritual profundamente imaginativo, emotivo, festivo e, se se quiser, transcendente. E a música é um dos elementos principais desse teatro. A música, como sabemos, mobiliza nossa consciência e inconsciência sem a necessidade do conceito. Pela música somos tomados e arremessados em regiões nas quais o controle da razão não pode operar. Wagner sabia disso. Nietzsche mais ainda. Os românticos, então, se alimentavam basicamente disso, ao ponto de sugerirem uma poesia que fosse, ela também, música.
No teatro de Zé Celso, a música é a ponte entre a fala poética, a liberação dos corpos e o andamento do enredo (ou antienredo, o que seria mais fiel no caso). É na música e em seus compassos que se esquadrinham os altos e baixos da emoção das peças. Todos os atores cantam, pois participam do drama como coautores com a particularidade de suas vozes, de seus timbres, de seus gestos. E os corpos dançam ao sabor das músicas, quase nunca se mantendo estáticos sob a vibração de um blues, rock, reggae ou samba. Tornam-se, na verdade, uma metáfora viva do movimento cósmico engendrado por este teatro-ritual. Colocam a existência em movimento e criam a realidade concreta do fluxo da vida.
Zé Celso não procura respeitar academicamente os textos dos quais se serve. A ebulição criativa de sua mente distorce as falas, acrescenta ideias, refaz percursos, reescreve os autores, anima-os com uma saraivada de contemporaneidades sem prejudicar sua existência histórico-temporal. O Oficina reanima textos como se reanimasse corpos, tornando-os mais brilhantes, instigantes, desejados. Não poderia ser diferente num teatro que pretende refundar a energia da vida a cada nova atuação. Um teatro que não veio para adoçar o perfume da burguesia que consome cultura como mais um produto conformista que seu capital pode pagar.
O ideal anárquico de Zé Celso e sua trupe é o de produzir a combustão, o incêndio, o rito criador-destruidor sonhado por Bakunin. E esse componente básico da alquimia do Oficina é que renova a dramaturgia brasileira e internacional, muitas vezes consumida por protótipos decorativos ou vanguardismos frios pra lá de caquéticos.
Não que o teatro intelectual, o engajado, o existencial-absurdo-pessimista ou outra coisa não possa existir, mas faz-se necessário a existência de um teatro que desestruture as certezas ao mesmo tempo instaurando os ritos do "sim à vida" nitezscheniano e reichiano. Um teatro que seja anticlássico, anticartesiano, antiaristotélico. É preciso que a inssurreição das fontes irracionais da criação tomem corpo e que o corpo dos atores e do público tornem-se fonte de paixão para que "a estrela bailante" possa ressurgir a cada novo rito.
A ideia de um teatro dos oprimidos vai por água abaixo com as explosões viscerais de Zé Celso, que impõe Eros contra Thanatos, que impõe a arte contra a vida petrificada.
Talvez seja em Bacantes que se possa encontrar a metáfora mais perfeita para todo o teatro de Zé Celso. A presença sedutora de Dionisius, que faz vibrar o desejo e o delírio, faz oposição à morte em vida dos corpos congelados, armados e sem emoção dos seguidores/empregados de Penteu. O Oficina encarna esse espírito dionisíaco. E a joyceana ― palavra "tragycomédiorgia" ― pode definir melhor que qualquer outra a postura criativa e existêncial do Oficina e toda a sua história por consolidar um teatro sem a caretice da classe média culpada ou da prepotência antierótica e destruidora da classe alta.
Em entrevista à IstoÉ, em 1996, quando da primeira apresentação de Bacantes, Zé Celso comentou sua peça: "Tentei fazer uma ópera brasileira de Carnaval. Recuperar a enorme riqueza do musical nacional, que vem da época de Arthur de Azevedo e que não é esta coisa mecânica, importada da Broadway. Mas que mistura a música brasileira, que tem uma ligação com o amor, a paixão, a religião, o rito, o Carnaval, com a coisa meio improvisada brasileira, suprida pela cena teatral feita ao vivo, sem dinheiro. Dionísio é o deus que se bebe, que se come. É o deus do vinho, das plantas, o deus da maconha, da ayahuasca. O deus de todos estes prazeres que são proibidos e temidos na sociedade global, aqueles prazeres que despertam a mente e o desejo".
As peças do Oficina reanimam forças latentes, dialetizando-as em pulsões alegres e trágicas, no riso solto, nos corpos livres e numa concepção prá lá de libertária do que seja o teatro. Vida eterna para Zé Celso e o Oficina!
Site do Teatro Oficina
*NadiaStabile
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