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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, fevereiro 25, 2014

O partido e a ordem




Além de 2014 e a reeleição de Dilma, está em curso outra batalha: a conexão (ou não) do PT com uma nova geração de militantes por um Brasil mais justo.
Jean Tible (*)
Desencontro
Existe um – surpreendente? – desencontro entre as mobilizações recentes (as jornadas de junho que prosseguem de várias formas e intensidades) e o Partido dos Trabalhadores.
Algumas posições-ações petistas causam surpresa (apesar de não representarem o PT como um todo): torcida – explícita ou não – pelo fim das manifestações; avaliação que estas acabaram; flerte com as perigosas vias da criminalização das “ações violentas” (de manifestantes, não das polícias).
São posturas petistas contra natura, já que o PT nasce e vem desse mesmo lugar, das resistências, ruas, locais de trabalho, bairros, periferias, campo. O PT como criação “inédita”, por mesclar democracia e diversidade internas com uma nova forma de ocupar posições institucionais. Um partido-movimento; que vem perdendo fôlego.
Passados onze anos de governo federal – e inúmeras conquistas sociais e políticas –, um diagnóstico compartilhado por muitos militantes e dirigentes manifesta a imperiosa necessidade de transformação do partido. As manifestações são justamente uma oportunidade inédita – uma dádiva – para o PT pensar as “lacunas que persistem na reflexão partidária” (Convocatória do V Congresso).
Reflexão e ação. Em várias intervenções, Dilma, Lula e Rui Falcão declararam sua “abertura” aos protestos e às reivindicações das ruas-redes. Apesar dos cinco pactos propostos pela Presidenta (e da vinda dos médicos cubanos), tal abertura ainda permanece, infelizmente, antes de tudo retórica.
Direito de lutar e manifestar
Talvez o principal desencontro se dê na falta de indignação frente às prisões arbitrárias de manifestantes que... manifestavam. Isso vai contra qualquer Estado democrático de direito e ocorreu em muitas cidades brasileiras, em vários momentos. Surgem, além disso, inúmeros relatos de perseguições cotidianas a vários militantes (e a suspeitíssima morte da atriz e diretora de teatro Gleise Dutra Nana, após um incêndio em sua casa em Duque de Caxias). Nenhuma fala contundente, nenhuma ação. Mesmo se esses fatos inadmissíveis são produto dos governos estaduais e suas polícias, várias intervenções desastrosas do Ministro da Justiça indicam um – implícito? – apoio à repressão suave em curso: “inteligência” contra “lideranças”, endurecimento da legislação.
Perdeu-se aí uma possibilidade de articulação entre lutas contra injustiças. Faltou uma posição mais contundente do PT pelo Estado democrático de direito, isto é contra a prisão arbitrária dos jovens (agora soltos, salvo um, o morador de rua Rafael Braga Vieira, não por acaso negro e pobre, condenado a cinco anos de prisão por carregar um frasco de desinfetante e outro de água sanitária, instrumentos de trabalho, na manifestação de 20 de junho), sem direito à fiança e com acusações frágeis para dizer o mínimo. Ademais, a crítica às condições carcerárias não se fez ouvir com força antes das injustas prisões dos petistas. Teria outra posição colocado os jovens manifestantes ao lado da revolta petista contra os arbítrios da AP470 e as prisões dos seus antigos dirigentes?
Quando a trágica morte do cinegrafista Santiago Ilídio Andrade vem se somar à dezena de mortes já ocorridas desde o início dos protestos (inclusive uma, do camelô Tasman Accioly fugindo das bombas da polícia no dia em que Santiago foi atingido), isso se reforça. O terrível acidente – e dramático erro – leva a um linchamento. A violência policial parece ser vista como natural. Assim como as balas de borracha. O que deve ser debatido é, ao contrário, o uso de máscaras por parte alguns manifestantes e leis contra o “terrorismo”. Acabaram encontrando-se, surpreendentemente, do mesmo lado PIG, muitos blogueiros progressistas e setores do PT...
Algo mudou no país. O recorrente se tornou insuportável. Amarildo. Amarildos. Douglas. E muitos outros. Revoltas contra o continuum escravocrata do nosso país. No entanto, ao invés de pautar de forma contundente uma reforma das polícias (incluindo a desmilitarização da PM, projeto da esquerda derrotado na Constituinte de 1988 e novamente nos anos 1990), de provocar um debate nacional, o PT praticamente silencia. Essa reforma e uma nova política de drogas (incluindo a legalização da maconha e outras medidas visando separar seu consumo do crime organizado) são fundamentais para enfrentarmos o extermínio da juventude negra, assim como o atual encarceramento em massa.
Uma agenda de esquerda caminharia, a meu ver, rumo à afirmação de um Direito à luta e à manifestação. Nunca mais Pinheirinho, Tekoha Guaviry e muitos outros, incluindo o assassinato de um índio por semana desde 2003 (dados do Cimi).
Algumas propostas já estão em pauta no Senado, por iniciativa de Lindbergh Farias (proibição das balas de borrachas e desmilitarização da polícia). Uma regulamentação das armas menos letais como um todo (balas de borracha, bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo, etc.) poderia ser um bom começo. Temos bons exemplos ao Sul, na Argentina (armas menos letais) e no Uruguai (maconha).
Democracia, representação e participação
Parece-me que a única forma de aprofundar o processo de transformação em curso no Brasil está na conexão do partido com um fértil fenômeno que envolve a realização de assembleias horizontais e a ocupação de espaços públicos, legislativos – e até shoppings! – e à política (mais horizontal, distribuída) que anuncia uma nova geração, aqui e pelo mundo. Menos representação e mais participação.
Trata-se de uma oportunidade de se repensar a participação popular e as dinâmicas sociedade-estado. Em que pese a importância, histórica e atual, da democracia participativa do modo petista de governar, esta não é mais suficiente.
O Orçamento Participativo teve um papel fundamental no difícil contexto dos anos 1990 para todas as esquerdas e buscava – numa das perspectivas mais radicais (Raul Pont) – colocar em xeque a “representação burguesa” a nível local (vereadores). Um esboço de soviet contemporâneo.
Hannah Arendt celebrava os conselhos como o “tesouro perdido da tradição revolucionária”, mas o fazia somente no sentido político e não econômico (este sendo inquestionável?). Paradoxalmente, o PT foi se aproximando de uma perspectiva “liberal” de participação. Temos o exemplo da Islândia (apesar das fortes especificidades desse país), onde uma revolta popular, seguida de um plebiscito, mudou a política econômica e depois a constituição com ampla participação dos cidadãos, inclusive pelas redes sociais. No programa do Partido X, criado a partir do 15M espanhol (indignados), aparece com destaque a ideia de uma democracia econômica.
Abre-se hoje o desafio de pensar o modelo produtivo e a participação neste campo. A abertura das planilhas, das companhias privadas de ônibus à geração e distribuição de energia. Criar novos espaços, tais como a reivindicação histórica da CUT em participar do Conselho de Política Monetária. Transparência (acesso aos dados) e participação na Petrobras, Eletrobrás e BNDES. As lutas abrindo os debates. Como foi decidida Belo Monte? Quais os investimentos na Amazônia? E as condições trabalhistas nas grandes obras? Que controle das empresas, públicas e privadas? Por que não temos uma política de esporte amador digna desse nome? Uma Copa e Olímpiadas participativas não teriam permitido as remoções em seu nome (Copa rebelde!).
A participação mais do que a representação envolve também pensar em mecanismos onde os usuários – da saúde, educação, transporte... – possam ter maior protagonismo, inclusive no controle social e – por que não? – gestão. Gestão das questões públicas para que se tornem realmente públicas, ou melhor, comuns...
Novos personagens. Desejo de mudar a política. Em ato, na prática. A abertura das planilhas do transporte metropolitano privado e outras somente são possíveis com mobilizações na rua. Isso vale também para as reformas “estruturais”, lei de mídia, reformas política, urbana, tributária ou agrária. Ou para aprovar, enfim, o Marco Civil da Internet, a reforma da polícia ou uma nova lei de drogas. Menos apelos (genéricos) às “grandes” reformas e mais ações concretas que apontam para essas mudanças que desejamos. Junho (que continua) permite pensar em novas formas de articulação entre lutas (ruas, redes e instituições). Onde o governo não tem “correlação de forças” para mudar certas políticas, o PT deve abrir os debates, mobilizar e ajudar a alterar a tal correlação de forças....
Além de 2014 e a reeleição de Dilma, está em curso outra batalha: a conexão (ou não) do PT com uma nova geração de militantes por um Brasil mais justo e livre e com sua potência democrática. 2014 pode ser “vencido” sem isso, o próximo período não. Tal desafio pede um partido vivo, isto é em contato com as lutas e aberto às transformações das novas vanguardas que surgem. Um diálogo entre um ator incontornável para uma democracia real no Brasil (o PT) e novas expressões de radical politização. Um partido participando das ocupações em curso. Ocupa PT?!
(*) Jean Tible é professor de relações internacionais do Centro Universitário Fundação Santo André
*GilsonSampaio

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