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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, novembro 03, 2014

O insulto de Gilmar a seus colegas de STF





Lançamento do livro Mensalão, de Merval Pereira


A palhaçada recomeça.
Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) deveriam ter comportamento discreto.
Só aqui no Brasil, eles se tornam agentes políticos com destaque, emitindo opiniões escalafobéticas sobre os destinos e problemas da nossa democracia.
Gilmar Mendes volta a ribalta com uma entrevista bombástica à Folha.
Nela, ele desenvolve conceitos, no mínimo, criativos.
Diz que o STF corre o risco de se tornar uma “corte bolivariana”.
Falando isso, Gilmar comete a proeza de ofender dois países: a Venezuela e o Brasil, além de ofender profundamente seus colegas de STF.
O conceito de “bolivarianismo”, como entende nossa mídia e seus lacaios, é um surto de mentes colonizadas.
Durante séculos, as cortes supremas da América Latina foram subservientes aos interesses das elites. Chancelaram ditaduras, ou mesmo criaram outras. Derrubaram governantes eleitos. E sempre, sempre, sempre estiveram ao lado dos opressores e da injustiça.
Quando as circunstâncias históricas fazem com as cortes supremas se tornem um pouco mais democráticas, mais preocupadas com problemas de justiça social do que com os arroubos golpistas da classe dominante, aí elas são chamadas de “bolivarianas”.
A mesma coisa vale para o Brasil.
O nosso STF chancelou e apoiou a ditadura. Seu contraponto ao regime militar foi tão discreto e leve que praticamente ninguém o percebeu.
Mais importante, o STF sempre foi o escoadouro de um Judiciário profundamente conservador e patrimonialista.
Patrimonialismo que alguns agora querem virar de ponta a cabeça e, numa pirueta conceitual, atribuir ao PT.
Não. O PT chegou ao poder apenas pelo voto popular e pela conquista democrática dos sindicatos.
O patrimonialismo, conforme descrito por Raymondo Faoro, se caracteriza pela ocupação hereditária do Estado, via postos vitalícios, em especial o Judiciário.
Faoro explica que, na medida em que a elite perde poder econômico, em virtude das crises, ela INVESTE na formação de quadros, em sua própria família, capazes de preencher os espaços políticos da administração pública.
O Judiciário sempre foi visto como um espaço político da elite.
O temor de Gilmar Mendes, e da mídia, não é que o STF se torne uma corte “bolivariana”.
Seu temor é que se torne uma corte democrática.
A prerrogativa das forças políticas, eleitas pelo povo, de nomear integrantes do STF, nasce do entendimento de que deve ou mesmo precisa haver harmonia entre os poderes.
A concepção de Gilmar de que o STF deve ter função “contramajoritária”, entendendo-se isso como um órgão quase de oposição ao Executivo, é um insulto a doutrina democrática.
O STF deve ter função contramajoritária em se tratando de processos penais, quando há sentimento pró-linchamento, e a corte deve se apegar estritamente aos autos e aos direitos humanos.
Exatamente o que não fez na Ação Penal 470, quando a gente mencionava, inclusive, esse papel contra-majoritário do STF, e figuras como Gilmar Mendes, com apoio da mídia, alardeavam que a corte não podia “decepcionar” a opinião pública.
De resto, o STF deve sim ser aliado do Executivo e do Legislativo. Ele está ali para ajudar, para evitar erros, para orientar. Jamais para fazer oposição, pois sua corte não foi eleita, e ao juiz é proibido, terminantemente, entrar no jogo político-partidário.
Vamos repetir: o Código de Ética da Magistratura, a Constituição Federal, e o código do STF, deixam bem claro que juízes não podem exercer atividade político-partidária, ou seja, não podem se arvorar como agentes “contramajoritários” de um governo eleito, beneficiando a oposição.
A posição de Gilmar é minoritária no STF.
No entanto, o apoio que tem na mídia a faz parecer dominante.
Sempre achei incrível a desenvoltura com que os juízes aliados da mídia assumem posições ideológicas. Mesmo sendo minoria, mesmo estando isolados, aparecem como campeões da razão, como vencedores do debate. Parecem não ter dúvidas sobre nada. Fazem declarações estapafúrdias sem que haja nenhum contraponto.
Enquanto isso, os ministros que, estes sim, exercem o papel contramajoritário em relação à mídia, e que procuram se portar de maneira republicana e reservada, como cabe a juízes, são vistos como tristes derrotados ideológicos, quando não criminalizados pelo clima de polarização política que se forma no país.
Prezados ministros, não caiam nessa!
A mídia brasileira quer transformar os derrotados em vencedores e os vencedores em derrotados.
Gilmar Mendes representa os derrotados. Ele é símbolo de um STF emasculado, a serviço das classes dominantes, da mídia e de um governo oligárquico e corrupto.
Quem foi o governo que aprovou a reeleição para si mesmo, sem a delicadeza de fazer uma consulta popular, como fizeram os “bolivarianos” da América Latina?
Quem foi o STF que aprovou esse absurdo, obviamente inconstitucional, de mudar regras eleitorais para si mesmo, e com o jogo em andamento?
Quem foi “bolivariano”?
Quanto a Pizzolato, Gilmar Mendes sabe muito bem o que aconteceu. Foi mais um condenado sem provas, exatamente porque o STF não soube se portar de maneira “contramajoritária” em relação à atmosfera de linchamento político produzida pela mídia.
Pior, foi condenado contra as provas de sua inocência. Cúmulo dos cúmulos, a ele foi negado o acesso a documentos que poderiam inocentá-lo.
A posição de Gilmar Mendes, ao tentar desqualificar seus próprios colegas, chamando-o de “bolivarianos”, apenas mostra a sua desonestidade intelectual.
Mendes é o mais autoritário dos ministros do STF. Não aceita críticas nas redes sociais. Faz o papel de ministro tagarela e midiático, tornando-se uma figura ultra pública, e ao mesmo tempo não tolera o contraponto, intimidando seus críticos com processos, o que revela uma personalidade profundamente antidemocrática.
Quem define como a corte deve ser? A mídia? Gilmar? Quem define o que é bolivariano?
Nos EUA, os presidentes também indicam os ministros da corte suprema, e os ideólogos da democracia, como Robert Dahl, explicam que a tendência a harmonizar a corte à vontade da maioria (representada pelo Executivo, que é eleito), é uma necessidade vital.
Franklin Roosevelt, por exemplo, não conseguiu fazer nada nos primeiros anos de seu governo, porque todas as suas iniciativas eram derrubadas na corte suprema. Com o passar dos anos (ele foi eleito quatro vezes, antes de instituírem o limite de apenas uma reeleição), ele foi indicando os ministros do tribunal e conseguindo, com isso, fazer passar leis importantes para a manutenção do nível de EMPREGO e da atividade econômica dos EUA.
A maior crítica de Dahl a corte suprema americana é o fato dela representar, às vezes, um obstáculo à implementação de iniciativas do governo eleito, tornando-se, com isso, um elemento não-democrático.
No caso do Brasil, o problema maior é que, além de representar, frequentemente, um elemento antidemocrático, o STF é vulnerável às pressões da mídia e das classes que dominam essa mídia, porque os ministros são oriundos dessas mesmas classes e estão cercados (e ameaçados), portanto, por sua mídia.
Problemas de um país ainda profundamente desigual.
O STF deve ser independente da mídia brasileira, cujo poder nasceu da ditadura, e respeitar profundamente o Executivo, cujo poder emana do povo, via sufrágio universal.
Só quando der uma banana para nossa mídia golpista (e a chamo golpista porque apoiou o golpe de 64, e até hoje apoia tudo que é golpe de Estado em nossa vizinhança), e entender que esta representa tudo que existe de autoritário, injusto e truculento em nossa cultura, a nossa corte máxima será genuinamente democrática.
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