O que não se disse sobre Martin Luther King
Neste artigo de Vicenç Navarro se
assinala os silêncios sobre a figura de Martin Luther King nos maiores
meios de comunicação, cujo objetivo é minimizar o carácter socialista ou
"subversivo" para o pensamento dominante, sobre a sua análise e
propostas de mudança nos EUA.
Por Vicenç Navarro
A propósito do quinquagésimo
aniversário da Marcha de Washington, onde o Reverendo Martin Luther King
fez o seu famoso discurso “Eu tenho um sonho” (I Have a Dream),
escreveram-se muitas reportagens sobre aquela marcha e sobre Martin
Luther King, referindo-se a este último como uma figura inspiradora que,
atuando como a consciência da nação norte-americana, exigiu àquela
sociedade o fim da discriminação contra a população negra, de origem
africana. É difícil ver ou ouvir aquele discurso sem relacioná-lo com a
sua causa.
Esta imagem inspiradora de Martin
Luther King foi construída à custa de esquecer e fazer esquecer o outro
Martin Luther King, o Martin Luther King verdadeiro, que via esta
discriminação como resultado de umas relações de poder baseadas numa
exploração, não só de raça, mas também de classe social. Silenciou-se
que Martin Luther King (a partir de agora MLK) era um socialista que,
sem dúvida alguma, foi muito crítico para com as sucessivas políticas,
tanto domésticas como internacionais, levadas a cabo durante todos estes
anos pelos governos federais, incluindo a administração Obama.
MLK esteve contra a guerra do
Vietname, como teria estado contra as guerras do Iraque e do
Afeganistão, e não só pelo seu pacifismo, mas também pelo seu
antimilitarismo e anti-imperialismo. Definiu o governo dos EUA como “o
agente máximo da violência hoje no mundo… gastando mais em instrumentos
de morte e destruição do que em programas sociais vitais para as classes
populares do país”. Era profundamente anti capitalista, como consta no
seu discurso de que “deveríamos denunciar aqueles que resistem a perder
os seus privilégios e prazeres que provêm dos benefícios adquiridos dos
seus investimentos, ganhando a sua riqueza através da exploração”.
E, em 1967, condenou com
contundência os três diabos que – em seu parecer - “caracterizavam o
sistema de poder norte-americano, a saber, o racismo, a exploração
económica e o militarismo”, acentuando que “as mesmas forças que
conseguem enormes benefícios através das guerras são as responsáveis
pela enorme pobreza no nosso país” (todas estas notas procedem do
excelente artigo de Michael Parenti “I Have a Dream, a Blurred Vision”,
29.08.13).
E o seu último discurso, de apoio às
reivindicações dos trabalhadores dos serviços de saneamento que estavam
em greve, findou com a famosa frase de que “a luta central nos EUA é a
luta de classes”. Duas semanas mais tarde foi assassinado, sem que nunca
se tenha esclarecido tal facto. Um fugitivo da prisão de Missouri,
James Earl Ray, foi acusado do assassinato. Foi detido no aeroporto de
Heathrow, em Londres, com grande quantidade de dinheiro em sua posse.
Nunca se esclareceu quem lhe deu esse dinheiro.
MLK foi um socialista radical na sua análise e nas suas propostas
Uma coisa é que MLK foi a
consciência dos EUA, exigindo que não se discriminassem os negros,
petição com um forte conteúdo moral à qual era difícil opor-se. Mas
outra coisa muito distinta e ameaçante para a estrutura de poder era
sublinhar que a origem da pobreza e da discriminação (que inclui também
amplos setores da classe trabalhadora branca, para além da negra, pois a
maioria de pobres nos EUA são brancos) requer uma mudança
revolucionária (por muito não violenta que seja) das estruturas
capitalistas daquele país. E a eleição do Presidente Obama prova,
precisamente, a certeza do diagnóstico de MLK. Hoje, o Presidente dos
EUA é um afro-americano e, não haja nenhuma dúvida, é um grande avanço.
Mas a pobreza entre negros (e entre brancos), nos EUA, não mudou desde
então.
Daí a enorme hostilidade do
establishment norte-americano, na qual a Policia Federal, o FBI, foi um
elemento chave. Dirigida por uma das figuras mais nefastas da história
dos EUA, J. Edgar Hoover (definido pelo famoso jornalista Russell Baker,
do New York Times, como um “tirano patético”) tentara convencer o
Fiscal Geral do Estado Federal, Robert Kennedy, “que o cérebro dos
negros era vinte e cinco por cento mais pequeno que o dos brancos”. Era
politicamente próximo do senador segregacionista da Carolina do Sul,
Strom Thurmond, tentando por todos os meios desacreditar o movimento
anti segregacionista e os seus dirigentes, grande número dos quais eram
socialistas e comunistas.
Na realidade, foram os sindicatos, e
muito particularmente, o sindicato do automóvel, o UAW (United
Automobile Workers) que financiaram em grande parte a tal marcha. E à
esquerda de MLK na marcha estava Walter Reuther, o seu secretário geral,
socialista e branco. Uma terça parte dos quatro milhões que
participaram na marcha de Washington eram brancos, grande número deles
sindicalistas e membros de partidos de esquerda. O slogan da marcha era
“liberdade, justiça e trabalho”. E o organizador da marcha, Asa Philip
Randolph, era o sindicalista afro americano mais conhecido nos EUA,
dirigente do sindicato ferroviário (Paul Le Blanc, “Revolutionary Road,
Partial Victory. The March on Washington for Jobs and Freedom”, Monthly
Review, Sept 2013).
E quando o Presidente Kennedy, a
instâncias de Hoover, chefe do FBI, pôs como condição para apoiar a
marcha, que fossem despedidos da liderança aqueles radicais, MLK
negou-se. A pressão da rua era tal que o Presidente Kennedy decidiu à
última hora apoiar a marcha, recebendo MLK na Casa Branca. E o bispo
católico de Washington, Patrick O’Boyle, ameaçou não participar na
marcha a não ser que os discursos (que tinham sido distribuídos
antecipadamente) fossem moderados.
Últimas observações. Em 1986, o dia
do nascimento de MLK foi declarado como festa nacional anual. Mas nesta
captura da imagem popular de MLK foi transformada deliberadamente a sua
mensagem e figura para reciclá-lo como figura inspiradora, consciência
do país, a favor dos direitos civis da população afro americana (com
especial interesse no seu poder de votar), esquecendo-se deliberadamente
do MLK verdadeiro, que pediu uma mudança profunda, não só nas relações
de raça, mas também de classe social. Desta última não se fala.
A história repete-se: as campanhas de Jesse Jackson
Eu tive a oportunidade de
experimentar uma situação parecida durante a minha participação na
campanha eleitoral do Reverendo Jesse Jackson (que estava com MLK quando
foi assassinado), nas primárias para a eleição do candidato
presidencial do Partido Democrata. Em resposta ao seu convite, fui
assessor especial, na sua campanha de 1984, e mais tarde na de 1988. Em
1984, e contra os meus conselhos, apresentou-se como a voz da minoria
negra, exigindo a sua incorporação na sociedade americana. Naquela
campanha, o establishment liberal norte-americano (cujo maior porta voz
era e é The New York Times) escreveu um editorial enormemente positivo
acerca da sua candidatura. A razão por que eu o desaconselhara dessa
estratégia era fácil de entender. Um representante dos interesses de uma
minoria dificilmente poderia alcançar o apoio maioritário da população
votante. Apresentar-se como candidato de uma minoria defendendo
primordialmente os interesse dessa minoria, não era a melhor maneira de
ganhar o apoio da maioria, para ser Presidente dos EUA.
Em 1988, não se apresentou como a
consciência dos EUA ou a voz dos negros, mas a voz da classe
trabalhadora dos EUA. E quando os meios de comunicação lhe perguntaram
como ele – negro - obteria o voto do trabalhador branco, contestou:
“fazendo-lhe ver que tem mais em comum com um operário negro, por ser
operário, que com o seu patrão por este ser branco”. Quando se somam
todas as cores (negro, branco, amarelo, cinzento, etc.) a classe
trabalhadora dos EUA é a maioria da população. Num discurso de classe,
mobilizou as bases do Partido Democrata (que estão mais à esquerda que a
sua direção), e conseguiu 40% de todos os delegados no congresso do
Partido Democrata. Nunca antes, nem depois, as esquerdas nos EUA tiveram
tanto poder desde os anos 50. O New York Times escreveu um editorial
muito negativo dizendo que Jesse Jackson, em caso de ser eleito,
destruiria os EUA. Quer dizer, os seus EUA.
A lição desta situação é clara. A
estrutura de poder deriva da enorme influência do seu poder de classe
(assim como de género e raça). E não permite que se toque nesse poder,
absorvendo as legítimas vontades do fim da discriminação de género e
raça, reciclando-as (incluindo elementos dos tais grupos discriminados
dentro da estrutura de poder) para as poder adaptar à estrutura social
dominante. Existe hoje um Presidente afro americano e uma classe média
negra que não existia antes, o que é motivo de celebração. Mas o nível
de vida da maioria de negros e brancos (pertencentes à classe
trabalhadora) não melhorou durante todo este período.
Artigo publicado por Vicenç Navarro na coluna “Pensamento Crítico” no diário PÚBLICO, 3 de setembro de 2013.
Tradução: António José André
*aldeiagaulesa
*FláviaL.
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