A elite que envergonha o Brasil
Com
24 anos de carreira, Rubens Valente é um dos repórteres mais premiados
do Brasil. Rigoroso na apuração dos fatos, fiel na interpretação dos
acontecimentos, construiu uma carreira respeitada no jornalismo. Durante
mais de dois anos, Valente se dedicou à investigação que resultou no
livro “Operação Banqueiro” (462
páginas, R$ 44,90, Geração Editorial), um mergulho nos documentos e
bastidores da Satiagraha. O subtítulo da obra resume o conteúdo escrito
com habilidade e independência: “Uma trama brasileira sobre poder,
chantagem, crime e corrupção. A incrível história de como o banqueiro
Daniel Dantas escapou da prisão com apoio do Supremo Tribunal Federal e
virou o jogo, passando de acusado a acusador”. A análise do livro pode
ser lida na edição impressa de CartaCapital que
chega às bancas nesta sexta-feira 10. Na entrevista a seguir, Valente
fala do papel do então presidente do STF, Gilmar Mendes, na campanha
contra a operação policial e a favor de Dantas e desmonta algumas
versões mentirosas alimentadas com o único intuito de anular a
condenação do banqueiro a 10 anos de prisão por suborno.“Operação Banqueiro” é uma ode à verdade factual e presta um grande serviço à democracia e ao jornalismo.
Blog do Briguilino: Na sua longa carreira de repórter, você se lembra de uma operação tão combatida quanto a Satiagraha?
Rubens Valente: O
aspecto mais grave foi a interdição da investigação, a impossibilidade
de as autoridades levarem a apuração inteira até o final.
Em
termos gerais, a regra do jogo do processo penal no Brasil é simples: o
delegado aponta evidências, o procurador acusa ou não, o juiz julga. Ao
longo do processo, o réu se defende. Em caso de inocência, após o
processo o réu pode buscar a punição dos responsáveis por um eventual
erro judicial. Mas no caso da Satiagraha, o delegado foi proibido de
investigar e o juiz foi impedido de julgar. O sistema foi brutalmente
bloqueado, de modo a não funcionar, a não concluir sequer a apuração
inicial. Ao longo de 24 anos como repórter, li e acompanhei algumas
dezenas de inquéritos policiais. Mas nunca vi uma inversão de fatores
tão dramática e na dimensão deste caso. Eu só posso qualificar o rumo
dos acontecimentos como espantoso. Que dizer de um cidadão que não chega
a ser julgado, mas em poucos meses passa a acusador em um processo
contra o próprio delegado e o próprio juiz que o prenderam? É o sonho de
todo investigado. As instituições estão em risco quando um acusado
consegue impedir que a atribuição de um fato criminoso seja devidamente
apurada até o fim pelos órgãos públicos. O bloqueio da Satiagraha foi um
dos principais motivos do meu empenho neste livro, inclusive
financeiro, pois todos os gastos, incluindo as viagens a três capitais e
cópias de documentos, foram bancados com as minhas próprias economias.
BB: Daniel
Dantas não só conseguiu anular na Justiça a operaçao como leis e regras
judiciais foram mudadas depois da ação policial, entre elas o uso de
algema (a Lei Dantas), que passou a ser disciplinado. De onde provém
tanto poder?
RV: Até
2010, o Opportunity sequer constava nas listas de doadores das
principais campanhas eleitorais registradas na Justiça eleitoral.
Estranho que uma empresa com tantas relações no meio político não tenha
colaborado para eleições até aquele ano. Mas certa vez um advogado de
Dantas o descreveu como um indivíduo com boas relações com o Congresso,
com os poderosos, uma pessoa “que se vira". De fato, as relações de
Dantas com políticos parece ser um traço fundamental na sua trajetória.
Mas isso não explica tudo. No livro procurei descrever as relações de
amizade e acadêmicas de advogados de Dantas e do banco Opportunity com o
ministro do Supremo Gilmar Mendes. Que durante a presidência do STF
disse abertamente se opor ao que chamava de abusos do Ministério Público
e da Polícia Federal. As coisas se juntaram. Sem Mendes na presidência
do Supremo, nem todo o prestígio de Dantas teria sido capaz de reverter o
jogo de forma tão espetacular. A alteração de regramentos se deveu ao
empenho pessoal de Mendes, que chegou a convocar um “pacto social” e
chamar o presidente da República “às falas”. Ele se tornou um ator
fundamental no processo de desqualificação da Satiagraha. Partiu do
Supremo o vazamento de um relatório, depois desmontado pelos fatos, que
sugeria a existência de grampo sobre autoridades do tribunal. E partiu
de Mendes a decisão de acolher a tese de que o juiz Fausto De Sanctis
havia se “insurgido” contra o Supremo pelo simples fato de ter ordenado
uma segunda ordem de prisão contra Dantas. Como se um juiz não pudesse
julgar de acordo com sua consciência. A ideia de uma suposta “rebeldia”
comoveu outros ministros do STF, que chegaram a falar em “união” em
defesa do tribunal. Como se o Supremo fosse um clube no qual os filiados
devem “defender” uns aos outros, e não meramente analisar fatos e
provas.
BB: A
introdução de “Operação Banqueiro” cita excessos e equívocos do
delegado Protógenes Queiroz. Essas falhas eram suficientes para anular o
processo?
RV: A
defesa do banqueiro se aproveitou dessas falhas. Mas o delegado muito
mais acertou do que errou. Ele acertou ao elaborar e colocar em prática
um plano que levou à documentação da oferta de suborno e à apreensão do
dinheiro que seria usado como propina para ele e outro delegado do caso.
Foi uma situação arriscada, que ele soube concluir com sucesso. Acertou
ao conseguir uma ampla interceptação de telefones e de comunicações por
internet com ordem judicial que trouxe evidências importantes para a
investigação. Acertou ao não se dobrar às dificuldades do inquérito, que
tratava de temas variados e de certa complexidade técnica. Esses
méritos, porém, foram ofuscados pela intensa campanha de desmoralização
que ele e a Satiagraha sofreram em diversos níveis e por diferentes
meios. Seus erros, por mais banais, acabaram amplificados à exaustão.
Por quê? Porque ele era a peça mais fraca do inquérito, havia sido
abandonado à própria sorte pela sua instituição, a Polícia Federal.
Qualquer jornalista com alguma experiência em processos judiciais sabe
que todo e qualquer inquérito policial, todo e qualquer, repito, contém
certa dose de erros, imprecisões ou conclusões sem rigorosa base nos
fatos. Mas o trabalho de um delegado é apenas uma parte do processo. O
sistema judicial possui freios e contrapesos que permitem que as
opiniões do delegado sejam verificadas por outras instâncias, a saber: o
Ministério Público, o juiz e os advogados dos réus. O beabá de um
advogado criminalista é descobrir esses erros e, por meio deles, tentar
obter alguma vitória judicial, na estratégia de convencer o Judiciário
sobre as “ilegalidades” da polícia. O jornalista isento que ler com
paciência o inquérito da Satiagraha vai concluir que os erros cometidos
pelo delegado ao longo da operação, talvez o principal deles tenha sido
pedir a colaboração de agentes da Abin sem um respaldo superior da
direção da Polícia Federal, jamais teriam a capacidade de levar à
anulação da operação. Em situações normais de temperatura e pressão,
seus erros poderiam ser censurados e corrigidos, mas não teriam qualquer
repercussão em termos de legalidade.
BB: Ao
longo da apuração, você encontrou alguma prova ou indício de que o
então presidente do STF, Gilmar Mendes, ou algum integrante do tribunal
foi grampeado pela Policia Federal ou pela Abin?
RV: Sob
vários pontos de vista (jornalístico, técnico, jurídico e mesmo ético),
não é mais possível aceitar que essa suspeita continue a ser veiculada
como fato, pois todas as imensas e complicadas investigações
desencadeadas por diferentes órgãos públicos jamais localizaram qualquer
prova material de grampo telefônico ou ambiental sobre qualquer
ministro do STF. Eu cuidei de verificar esse ponto quase à exaustão.
Ouvi com atenção e a necessária dose de desconfiança integrantes da
Operação Satiagraha, li as conclusões das investigações policiais, vi os
laudos do material apreendido. Não há uma linha sequer sobre
constatação de grampo contra autoridades do Supremo. Esses são os
elementos concretos que integram o processo. Fora disso, só mesmo a
paranóia, alimentada por um estranho silêncio das autoridades
encarregadas de verificar a existências desses supostos grampos. A
Polícia Federal e a Procuradoria Geral da República sabem muito bem que
não existe prova alguma dos grampos, mas até hoje, mais de cinco anos
depois, jamais vieram a público fazer o desmentido cabal. Nunca
prestaram contas das investigações. Esse ato de transparência deveria
ter ocorrido há muito tempo, pois instituições e figuras públicas foram
colocadas em xeque.
BB: E quanto as supostas ilegalidades cometidas pela Abin?
RV: Li
e reli várias vezes os diversos depoimentos e documentos que integram a
Satiagraha e o inquérito aberto para apurar a participação da Abin. A
única conclusão possível é que a Abin não usurpou o papel de
investigação consagrado pela Constituição às polícias. A Abin não
interceptou nenhum telefonema, não tomou nenhum depoimento e não
requisitou ao juiz do caso nenhuma medida de qualquer natureza. Em suma,
os agentes da Abin em momento algum conduziram o inquérito. Por todo o
tempo a investigação continuou presidida pela autoridade policial, com a
devida fiscalização do Ministério Público e sob os olhares do
Judiciário. O papel dos agentes da Abin se restringiu a acompanhar e
fotografar alvos nas ruas, ler emails interceptados por ordem judicial,
transcrever conversas interceptadas com ordem judicial. Ou seja, era um
papel meramente auxiliar. Um trabalho braçal. No pen drive do delegado
Protógenes foram apreendidos também documentos em word produzidos por
agentes da Abin sobre algumas autoridades. Esses papéis, que incluem
dados delirantes e informações de difícil comprovação, jamais foram
anexados à Satiagraha. São imprestáveis como prova, tanto que o delegado
não os juntou ao inquérito. E foi apenas esse o papel da Abin. Por que a
eventual participação de agentes da Abin em certo ponto do inquérito
poderia ser capaz de anular a operação inteiraa? Não há uma única
participação, nem mesmo lateral, de agentes da Abin no episódio do
suborno de dois delegados federais. A alegação de que a mera e pontual
ajuda de alguns agentes da Abin em qualquer ponto da investigação seja
capaz de anular um processo inteiro é inteiramente risível. É, na
verdade, um tapa na cara dos cidadãos brasileiros pagadores de impostos e
cumpridores das leis. Os advogados falam na teoria importada dos EUA
dos “frutos da árvore contaminada”. Diz a tese que um processo gerado
por uma prova ilícita deve ser anulado pelo vício na origem. Ocorre que a
participação dos agentes da Abin n Satiagraha nada teve a ver com a
origem do processo, foi sempre posterior, e portanto a teoria é
totalmente inválida.
BB: Dantas já foi condenado fora do Brasil.
Cortes britânicas e norte-americanas se referiram a ele em termos duros
e o acusaram de fraude, entre outro crimes. No Brasil, a despeito da
anulação posterior (agora em analise no Supremo), ele foi condenado em
primeira instancia por suborno. Seu nome também tem sido citado nos
principais escândalos da era FHC e Lula. Ele continua, porém, a ser
tratado em diversos círculos e por considerável parcela da mídia como um
"empresário polêmico". E apenas isso. Pelo seu livro, conclui-se que
ele e mais do que polêmico, certo?
RV: Dantas
e o banco Opportunity aparecem referidos em diversos escândalos nos
últimos anos: grampos do BNDES e as privatizações, caso do extinto banco
Banestado, investigação privada da Kroll e a Operação Chacal, CPI dos
Correios e o mensalão e, por fim, a Operação Satiagraha. Essa sequência
de acontecimentos coloca o banqueiro como um dos principais personagens
da história brasileira contemporânea. Tratá-lo como “polêmico” é um
resumo pobre e impreciso. Ele foi acusado e investigado não por suas
supostas “polêmicas”, mas por fatos e atos que podem e devem ser
averiguados.
BB: As
relações de Dantas com o PSDB foram retratadas em varias reportagens e
livros ao longo das ultimas décadas. "Operação Banqueiro" acrescenta
novas e interessantes provas dessa relação umbilical. O banqueiro, por
outro lado, sempre se declarou perseguido pelo PT, mas os interesses do
Opportunity e do partido se entrelaçam na Satiagraha. Você chegou a
buscar explicações para os motivos de os petistas terem saído em apoio
ao banqueiro e participarem da força tarefa para desacreditar a
operação?
RV: A
Satiagraha veio a público em abril de 2008, no mesmo período de
intensas negociações entre os fundos de pensão ligados ao PT, a
telefônica Oi e o banqueiro com vistas à criação da gigante da telefonia
BrOi. Havia um interesse público e manifesto do governo na criação da
nova supertele, uma operação que acabou possível após um ato do próprio
presidente Lula. Creio que as investigações da Satiagraha chegaram num
péssimo momento para os interesses do governo, que queria logo concluir
aquela fusão. Isso pode ter contribuído para a extrema má vontade do
governo em relação ao inquérito policial. Por outro lado, Dantas havia
conseguido se aproximar de petistas históricos. No livro procurei
descrever o papel de dois desses petistas no processo de criação da
BrOi. Houve um segundo fato: em 2008, a Polícia Federal havia incomodado
muitos interesses de políticos de vários partidos, incluindo petistas e
integrantes da base aliada. E a “tolerância” do PT e do governo em
relação à PF havia chegado ao ponto máximo um ano antes, quando uma
equipe de policiais invadiu a casa do irmão de Lula na Grande São Paulo.
Por sua vez, Lula havia superado, do ponto de vista da sua imagem
diante o eleitorado, o trauma da acusação do mensalão, e não estava tão
dependente das ações espetaculares da polícia, que davam ao governo um
discurso anti-corrupção.
BB: Dantas
recorre a uma teoria conspiratória para se defender. Diz-se vitima da
união de interesses políticos e econômicos de integrantes do PT, seu
desafeto Luis Roberto Demarco e a Telecom Italia. Ele tem usado esse
argumento para tentar influenciar processos contra ele no Brasil. Nos
últimos anos, ele e seus advogados se referem a um inquérito em Milao
que investigou e puniu funcionários da Telecom Italia por espionagem.
Esse inquérito sempre é evocado em diversos processos pelo Opportunity.
Ao longo de sua pesquisa, encontrou alguma evidência dessa conspiração
ou alguma relação entre os processos no Brasil e a investigação
italiana?
RV: Tive
acesso e verifiquei milhares de páginas que integram a investigação
realizada na Itália, incluindo os extensos depoimentos dos principais
envolvidos. Como digo no livro, o Opportunity enfrenta sérias e talvez
incontornáveis dificuldades para demonstrar uma prova objetiva sobre a
alegada corrupção de autoridades do Brasil por funcionários da Telecom
Italia de modo a “perseguir” o banco brasileiro. Até o momento, essa
hipótese não passa disso, uma simples suspeita sem confirmação. Nos
autos há apenas referências indiretas e imprecisas. Mas os advogados do
Opportunity passaram a manobrar esse fantasma para relacionar a
investigação no Brasil à outra da Itália, exigindo que uma acusação só
fosse investigada depois da outra. É como se um motorista atropelasse
alguém na rua e, quando encontrado pela polícia, alegasse ao juiz: “Lá
na Itália uma pessoa disse que esse delegado que me prendeu aqui está me
perseguindo. Então eu só posso ser acusado do atropelamento se antes
vocês investigarem esse delegado”. É um argumento juridicamente absurdo.
Mas que ganhou guarida em variados meios.
BB: No
relatório da Satiagraha, Protógenes Queiroz dedica um capitulo às
relações de Dantas com a mídia. Como você definiria essa relação?
RV: O
foco do meu livro são as provas, acusações e explicações do caso
Satiagraha e não o papel da mídia, embora ela seja um personagem
presente em toda a narrativa. Eu também entendi que o debate sobre o
papel da mídia na cobertura da Satiagraha havia sido extenso e intenso
na internet, por meio de blogs e sites e outras publicações, como
CartaCapital, que remaram contra a maré, e por isso eu não precisava
gastar páginas que poderiam ser usadas para avaliar outros aspectos do
caso. Mas ao longo do livro eu procurei demonstrar diversas imprecisões e
enganos divulgados pela mídia que acabaram por ajudar as posições do
Opportunity. Outro aspecto notável foi ver que boa parte da mídia não
viu nenhum problema na paralisação e anulação do caso Satiagraha,
considerando-os fatos quase rotineiros, mas que de banais nada tinham.
do Blog do Briguilino
*cutucandodeleve
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