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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, janeiro 18, 2014

Presídios brasileiros: trezentos anos de ilusão punitiva como solução para problemas de uma sociedade desigual


Irmandade do Espírito Santo entregando alimentos aos presos da Cadeia Velha (RJ)
Jean-Baptiste Debret, 1822


Presídios brasileiros: trezentos anos de ilusão punitiva como solução para problemas de uma sociedade desigual

Gerivaldo Neiva *

O Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro, foi construído onde existiu o prédio da Cadeia Velha, que a exemplo dos presídios atuais era palco de torturas, superlotação, instalações precárias e total falta de assistência aos detentos. De acordo com a reportagem de Cyntia Campelo Rodrigues (Revista História Viva, ano VI, nº 76, Duetto Editorial), nos séculos XVIII e XIX, a Cadeia Velha funcionou como típica prisão do Antigo Regime na América portuguesa e ali foi semeado o terror que até hoje impera nos presídios do país.
Na Cadeia Velha, segundo a reportagem, os presos tinham de custear sua estadia na cadeia e aqueles que não tinham condições ou família para lhes amparar eram obrigados a pedir esmolas, presos por longas correntes às grades da prisão, às pessoas que passavam nas proximidades.
Na mesma reportagem, uma gravura de Jean-Baptiste Debret, de 1822, retrata os membros da irmandade do Espírito Santo levando alimentos para os presos acorrentados nas grades da cadeia, na véspera de Pentecostes. De acordo com a enciclopédia Wikipedia, a celebração do Divino Espírito Santo teve origem na promessa da Imperatriz, D. Izabel de Aragão, por volta de 1320. A Rainha teria prometido ao Divino Espírito Santo peregrinar o mundo com uma cópia da coroa do império e uma pomba no alto da coroa, que é o símbolo do Divino Espírito Santo, arrecadando donativos em benefício da população pobre, caso o esposo, o imperador D. Dinis, fizesse as pazes com seu filho legítimo, D. Afonso, herdeiro do trono imperial”.
No caso dos detentos da Cadeia Velha, a situação era tão dramática que os donativos arrecadados pela Irmandade do Espírito Santo do Rio de Janeiro colonial eram destinados aos presos que viviam de esmolas e escravos esquecidos na cadeia por seus senhores. Não deixava de ser um ato de piedade e generosidade da elite colonial para com os miseráveis presos.
Evidente que não se poderiam esperar comportamento diverso dos membros da Irmandade. Por exemplo, seria uma grande utopia esperar que a elite carioca do século XVIII fizesse alguma crítica ou protesto em relação às condições desumanas em que viviam os presos. Assim, não se questionava se o sistema era injusto, se violava a dignidade dos presos ou mesmo alguma crítica ao próprio sistema punitivo vigente. O que se pretendia, na verdade, e isto já parecia ser muito e descarregava as consciências carregadas de culpas, era fazer caridade e filantropia. Da mesma forma, jamais se poderia esperar alguma crítica com relação ao modelo de organização social baseado na escravidão.
Recentemente, depois dos acontecimentos no presídio de Pedrinhas, em São Luis (MA), parece que a sociedade brasileira, finalmente, tomou conhecimento do inferno que é o sistema penitenciário brasileiro. Muito pouco diferente, aliás, do que era o sistema há trezentos anos nas prisões da colônia.
Culpados e soluções são apontados a todo instante e por diversos atores. Em síntese, todas as soluções passam por construção de mais presídios e oferecimento de melhores condições aos presos, ou seja, muito parecido com a proposta da Irmandade do Divino Espírito Santo, o que importa é cuidar dos presos e melhorar sua estadia na prisão. Da mesma forma, depois de séculos, não se questiona as razões da criminalidade, o sistema punitivo vigente e, muito menos, o modelo social baseado na exploração, concentração de renda e desigualdade social.
Nesta lógica perversa, a privação da liberdade continua sendo o recurso único e definitivo para punir pessoas que cometem crimes e a cadeia ou penitenciária como sendo o local único e definitivo para cumprimento do castigo por aqueles que violam a lei penal. Na mesma lógica, também não interessa questionar o modelo de organização social que produz a delinquência comum, pois isto implicaria na construção de um novo modelo de convivência humana.
Enquanto isso, rios de dinheiro serão aplicados – ficando boa parte na rede de corrupção – na construção de mais presídios para o cumprimento da pena de prisão e vamos todos continuar pensando que sempre foi assim e assim será por séculos sem fim; que não existe alternativa ao sistema punitivo vigente e, muito menos, a possibilidade de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme definido na Constituição de 1988 como sendo o objetivo desta República chamada Brasil.


* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil).
*http://www.gerivaldoneiva.com/2014/01/presidios-brasileiros-trezentos-anos-de.html

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