Presídios brasileiros: trezentos anos de ilusão punitiva como solução para problemas de uma sociedade desigual
Irmandade do Espírito Santo entregando alimentos aos presos da Cadeia Velha (RJ)
Jean-Baptiste Debret, 1822
Presídios
brasileiros: trezentos anos de ilusão punitiva como solução para problemas de
uma sociedade desigual
Gerivaldo Neiva
*
O
Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro, foi construído onde existiu o prédio da
Cadeia Velha, que a exemplo dos presídios atuais era palco de torturas,
superlotação, instalações precárias e total falta de assistência aos detentos.
De acordo com a reportagem de Cyntia Campelo Rodrigues (Revista História Viva,
ano VI, nº 76, Duetto Editorial), nos séculos XVIII e XIX, a Cadeia Velha
funcionou como típica prisão do Antigo Regime na América portuguesa e ali foi
semeado o terror que até hoje impera nos presídios do país.
Na
Cadeia Velha, segundo a reportagem, os presos tinham de custear sua estadia na
cadeia e aqueles que não tinham condições ou família para lhes amparar eram
obrigados a pedir esmolas, presos por longas correntes às grades da prisão, às
pessoas que passavam nas proximidades.
Na
mesma reportagem, uma gravura de Jean-Baptiste Debret, de 1822, retrata os
membros da irmandade do Espírito Santo levando alimentos para os presos
acorrentados nas grades da cadeia, na véspera de Pentecostes. De acordo com a
enciclopédia Wikipedia, “a celebração do Divino Espírito Santo teve
origem na promessa da Imperatriz, D. Izabel de Aragão, por volta
de 1320. A Rainha teria prometido ao Divino Espírito Santo peregrinar o mundo
com uma cópia da coroa do império e uma pomba no alto da coroa, que é o símbolo
do Divino Espírito Santo, arrecadando donativos em benefício da população
pobre, caso o esposo, o imperador D.
Dinis, fizesse as pazes com seu filho legítimo, D. Afonso, herdeiro do trono imperial”.
No caso dos detentos da Cadeia Velha, a situação
era tão dramática que os donativos arrecadados pela Irmandade do Espírito Santo
do Rio de Janeiro colonial eram destinados aos presos que viviam de esmolas e
escravos esquecidos na cadeia por seus senhores. Não deixava de ser um ato de
piedade e generosidade da elite colonial para com os miseráveis presos.
Evidente que não se poderiam esperar comportamento
diverso dos membros da Irmandade. Por exemplo, seria uma grande utopia esperar
que a elite carioca do século XVIII fizesse alguma crítica ou protesto em
relação às condições desumanas em que viviam os presos. Assim, não se
questionava se o sistema era injusto, se violava a dignidade dos presos ou
mesmo alguma crítica ao próprio sistema punitivo vigente. O que se pretendia, na
verdade, e isto já parecia ser muito e descarregava as consciências carregadas
de culpas, era fazer caridade e filantropia. Da mesma forma, jamais se poderia esperar
alguma crítica com relação ao modelo de organização social baseado na
escravidão.
Recentemente, depois dos acontecimentos no
presídio de Pedrinhas, em São Luis (MA), parece que a sociedade brasileira,
finalmente, tomou conhecimento do inferno que é o sistema penitenciário
brasileiro. Muito pouco diferente, aliás, do que era o sistema há trezentos
anos nas prisões da colônia.
Culpados e soluções são apontados a todo instante
e por diversos atores. Em síntese, todas as soluções passam por construção de
mais presídios e oferecimento de melhores condições aos presos, ou seja, muito
parecido com a proposta da Irmandade do Divino Espírito Santo, o que importa é
cuidar dos presos e melhorar sua estadia na prisão. Da mesma forma, depois de
séculos, não se questiona as razões da criminalidade, o sistema punitivo
vigente e, muito menos, o modelo social baseado na exploração, concentração de
renda e desigualdade social.
Nesta lógica perversa, a privação da liberdade continua
sendo o recurso único e definitivo para punir pessoas que cometem crimes e a
cadeia ou penitenciária como sendo o local único e definitivo para cumprimento
do castigo por aqueles que violam a lei penal. Na mesma lógica, também não
interessa questionar o modelo de organização social que produz a delinquência
comum, pois isto implicaria na construção de um novo modelo de convivência
humana.
Enquanto isso, rios de dinheiro serão aplicados –
ficando boa parte na rede de corrupção – na construção de mais presídios para o
cumprimento da pena de prisão e vamos todos continuar pensando que sempre foi
assim e assim será por séculos sem fim; que não existe alternativa ao sistema
punitivo vigente e, muito menos, a possibilidade de construção de uma sociedade
livre, justa e solidária, conforme definido na Constituição de 1988 como sendo
o objetivo desta República chamada Brasil.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia
(AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition
(Leap-Brasil).
*http://www.gerivaldoneiva.com/2014/01/presidios-brasileiros-trezentos-anos-de.html
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