Páginas

Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, fevereiro 08, 2014

Serão os media apenas uma outra palavra para controle?


“…A maior parte dos sequestradores do 11/Set vieram da Arábia Saudita. Em 2010, a Wikileaks divulgou um telegrama enviado a embaixadas dos EUA pela secretária de Estado Hilary Clinton. Ela escreveu isto: "A Arábia Saudita permanece um apoio financeiro crítico para a Al Qaeda, os Talibans, al Nusra e outros grupos terroristas... no mundo inteiro". E ainda assim os sauditas são nossos valiosos aliados. Eles são bons ditadores. Os membros da casa real britânica visitam-nos frequentemente. Nós lhes vendemos todas as armas que eles querem.”
John Pilger [*]

http://resistir.info/pilger/imagens/du_bassora.jpg
Os filhos do urânio empobrecido(deplet uranium:DU): vítimas, em Bassora do envenamento químico, físico e radiológico praticado pelo imperialismo anglo-americano no Iraque
Um inquérito recente perguntou ao povo britânico quantos iraquianos foram mortos devido à invasão do país em 2003. As respostas dadas foram chocantes. A maioria disse que menos de 10 mil haviam sido mortos. Estudos científicos informam que mais de um milhão de homens, mulheres e crianças iraquianos morreram num inferno desencadeado pelo governo britânico e seu aliado em Washington. Isso é o equivalente ao genocídio em Ruanda. E a carnificina prossegue. Implacavelmente.
O que isto revela é como nós na Grã-Bretanha temos sido enganados por aqueles cujo trabalho é manter a informação correcta. O escritor e académico americano Edward Herman chama a isto "normalizar o impensável". Ele descreve dois tipos de vítimas no mundo das notícias: "vítimas valiosas" e "vítimas não valiosas". "Vítimas valiosas" são aquelas que sofrem nas mãos dos nossos inimigos: os tipos de Assad, Qadafi, Saddam Hussein. "Vítimas valiosas" qualificam para o que chamamos "intervenção humanitária". "Vítimas não valiosas" são aquelas que estorvam o caminho do nosso poder punitivo e aquelas dos "bons ditadores" que empregamos. Saddam Hussein foi outrora um "bom ditador" mas ficou arrogante e desobediente, tendo então sido despromovido a "mau ditador".
Na Indonésia, o general Suharto era um "bom ditador", pouco importando a sua carnificina de cerca de um milhão de pessoas, ajudada pelos governos da Grã-Bretanha e América. Ele também liquidou um terço da população de Timor Leste com a ajuda de caça britânicos e metralhadoras britânicas. Suharto foi mesmo saudado em Londres pela rainha e quando morreu pacificamente na sua cama, foi louvado como alguém esclarecido, um modernizador, um de nós. Ao contrário de Saddam Hussein, ele nunca se tornou arrogante.
Quando viajei no Iraque na década de 1990, os dois principais grupos muçulmanos, os xiitas e os sunitas, tinham suas diferenças mas viviam lado a lado, casavam-se mesmo entre si e consideravam-se com orgulho como iraquianos. Não havia Al Qaida, não havia jihadistas. Nos arrebentámos tudo aquilo em 2003 com "pavor e choque". E hoje sunitas e xiitas estão a combater-se por todo o Médio Oriente. Este assassínio em massa está a ser financiado pelo regime na Arábia Saudita que decapita pessoas e discrimina mulheres. A maior parte dos sequestradores do 11/Set vieram da Arábia Saudita. Em 2010, a Wikileaks divulgou um telegrama enviado a embaixadas dos EUA pela secretária de Estado Hilary Clinton. Ela escreveu isto: "A Arábia Saudita permanece um apoio financeiro crítico para a Al Qaeda, os Talibans, al Nusra e outros grupos terroristas... no mundo inteiro". E ainda assim os sauditas são nossos valiosos aliados. Eles são bons ditadores. Os membros da casa real britânica visitam-nos frequentemente. Nós lhes vendemos todas as armas que eles querem.
Utilizou a primeira pessoa do plural, "nós" e "nosso" de acordo com locutores e comentadores que frequentemente utilizam o "nós", preferindo não distinguir entre o poder criminoso dos nossos governos e nós, o público. Todos nós somos assumidos como partes de um consenso: Conservadores e Trabalhistas, a Casa Branca de Obama também. Quando Nelson Mandela morreu, a BBC foi a correr a David Cameron, depois a Obama. Cameron, que foi à África do Sul no 25º ano do aprisionamento numa viagem que equivalia ao apoio ao regime do apartheid, e Obama que recentemente derramou uma lágrima na cela de Mandela em Robben Island – ele que preside as jaulas de Guantanamo.
O que lamentavam eles quanto a Mandela? Evidentemente, não a sua extraordinária vontade de resistir a um regime opressivo cuja perversão os governos dos EUA e Grã-Bretanha apoiaram anos a fio. Ao invés disso, estavam gratos pelo papel crucial que Mandela desempenhou na supressão de um levantamento dos negros na África do Sul contra a injustiça da política branca e do poder económico. Isto foi certamente a única razão porque foi libertado. Hoje o mesmo poder económico implacável é apartheid de uma outra forma, fazendo da África do Sul a sociedade mais desigual da terra. Alguns chamam a isto "reconciliação".
Todos nós vivemos numa era de informação – ou assim nos dizemos um ao outro quando acariciamos nossos smart phones como contas de um rosário, com as cabeças inclinadas, verificando, monitorando, tweetando. Estamos ligados; enviamos mensagens; e o tema dominante das mensagens é nós mesmos. A identidade é o espírito da época. Há muito tempo, em "Admirável mundo novo", Aldous Huxley previu isto como o meio final de controle social porque era voluntário, viciante e amortalhado em ilusões de liberdade pessoal. Talvez a verdade seja que vivemos não numa era de informação mas numa era dos media. Tal como a memória de Mandela, a maravilhosa tecnologia dos media foi sequestrada. Desde a BBC até a CNN, a câmara de eco é vasta.
Ao aceitar o Prémio Nobel da Literatura em 2005, Harold Pinter falou acerca de uma "manipulação do poder à escala mundial, se bem que mascarando-o como uma força para o bem universal, um brilhante, mesmo esperto, acto de hipnose com grande êxito". Mas, disse Pinter, "isto nunca aconteceu. Nada alguma vez aconteceu. Mesmo enquanto estava a acontecer não estava a acontecer. Não importava. Não era de interesse".
Pinter referia-se aos crimes sistemáticos dos Estados Unidos e a uma censura não declarada por omissão – isto é, excluir informação crucial que possa ajudar-nos a dar sentido ao mundo.
Hoje a democracia liberal está a ser substituída por um sistema no qual o povo responde a um estado corporativo – não o inverso como deveria ser. Na Grã-Bretanha, os partidos parlamentares são devotados à mesma doutrina de cuidar dos ricos e combater os pobres. Esta negação da democracia real é uma mudança histórica. Eis porque a coragem de Edward Snowden, Chelsea Manning e Julian Assange é tamanha ameaça para os poderosos e inimputáveis. E é uma lição para aqueles de nós que pretendem manter as coisas claras. O grande repórter Claud Cockburn disse isto bem: "Nunca acredite em qualquer coisa até que seja oficialmente negada".
Imagine se as mentiras dos governos houvessem sido adequadamente desafiadas e reveladas quando eles secretamente preparavam-se para invadir o Iraque – talvez um milhão de pessoas estivesse viva hoje.
[*] Transcrição da participação de Pilger na edição especial do programa "Today", da BBC Radio 4, em 2/Janeiro/2014, editada pelo artista e músico Polly Harvey. Pode ouvir a transcrição acima aqui .
*GilsonSampaio

Nenhum comentário:

Postar um comentário