Amar o jornalismo, criticar a imprensa
A imprensa brasileira funciona como um partido de oposição, mais
eficiente, estruturado, coeso e determinado do que as agremiações
políticas oficiais. Mas não se trata de um partido de oposição à aliança
que governa o Brasil desde 2003: é uma organização política que em
muitos aspectos se assemelha ao Tea Party americano, ou seja, um sistema
estruturante do pensamento mais conservador que frequenta o espaço
público.
Se o governo federal estivesse nas mãos do PSDB, e este atuasse como um
partido socialdemocrata nos moldes europeus, a imprensa teria uma
atitude semelhante, de oposição.
As evidências do comportamento enviesado da mídia tradicional, aquela
que domina a agenda institucional e serve à indústria cultural, são
muitas e foram consolidadas paralelamente a um processo de
empobrecimento da atividade jornalística nas últimas décadas. O processo
é longo, foi marcado por disputas cruentas no interior das redações no
período imediatamente posterior à redemocratização, e afinal vencido
pelo conservadorismo no início deste século.
O fato de o Partido dos Trabalhadores ter alcançado o poder federal na
mesma época é daquelas ironias da história observadas pelo historiador
Isaac Deutscher ao analisar o comunismo dos anos 1960.
A controvérsia em torno desse comportamento da imprensa se sustenta
precariamente no fato de que a maioria dos analistas se prende à relação
entre os principais veículos de informação e o núcleo de poder ligado
ao ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Um operário na Presidência
significou, para as famílias que ainda controlam as empresas de
comunicação, uma ofensa tão grande quanto tem sido, para a elite
conservadora dos Estados Unidos, a ascensão de um negro ao cargo mais
alto daquela nação.
Essa relação de ódio e negação se estende por tudo que estiver ligado a
esse evento histórico: o fato de a democracia brasileira ter evoluído
ao ponto de eleger presidente um operário com pouca educação formal. Não
é o PT que a imprensa odeia e despreza: é o processo democrático, que
permitiu essa “aberração”.
Não por acaso, os leitores típicos dos jornais e de publicações como Veja e Época
manifestam costumeiramente sua baixa apreciação pelo “povo” e sua
capacidade de discernimento, como se pode observar nas seções de cartas e
comentários.
Jornalismo em crise
Criticar a imprensa, denunciando o jornalismo partidário, é na verdade
uma demonstração de respeito ao jornalismo e à imprensa, como ela
deveria ser.
Defender a imprensa como ela é e conformar-se com o jornalismo de
quinta categoria que tem sido imposto aos brasileiros, de forma geral, é
sintoma de alienação, ou, pior, recurso de malabarismo intelectual
para preservar a reputação sem cair no index do sistema da mídia.
Louve-se: é preciso muito jogo de cintura para salvar a ficção da
objetividade sem ter as portas fechadas pelas redações. No entanto,
chegamos ao ponto em que não há subterfúgios, pois a escolha da imprensa
hegemônica está destruindo o jornalismo de qualidade no Brasil.
Concretamente, o jornalismo brasileiro é pior, hoje, do que há vinte
anos? A resposta é: sim, piorou não apenas a qualidade do jornalismo no
Brasil, mas também a qualificação dos jornalistas, de modo geral, e a
própria noção do valor social da atividade jornalística.
Uma pesquisa coordenada pela professora Roseli Fígaro na USP constatou essa realidade (ver resenha do livro aqui): o jornalismo brasileiro está imerso em profunda crise. Um artigo publicado na quinta-feira (2/1) pela Agência Fapesp (ver aqui)
atualiza alguns aspectos desse estudo. O texto afirma explicitamente
que “os produtos jornalísticos impressos, televisivos ou radiofônicos
são feitos de maneira completamente diferente do que há cerca de vinte
anos”.
A mudança foi para pior, segundo a pesquisa, provocada principalmente
por uma reestruturação produtiva nas redações, com o aumento do número
de jornalistas sem registro profissional e o afastamento dos
profissionais mais experientes.
A desconstrução do jornalismo foi feita pedra por pedra, e não é apenas
fenômeno causado pelas novas tecnologias de comunicação, mas por uma
escolha estratégica das empresas. Trata-se de um processo que corre
paralelo ao projeto conservador de poder, que, não podendo eventualmente
ser realizado pelas vias partidárias, porque o eleitorado parece
rejeitar suas propostas, passa a atuar pelo sistema da mídia.
Simples assim.
Luciano Martins Costa
*comtextolivre
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