Hospitais públicos de SP gerenciados por OSS: Rombo acumulado é de R$147,18 milhões
A saúde pública no Estado de São Paulo está sendo privatizada rapidamente, a passos largos.
O símbolo desse processo são as OSS: Organizações Sociais de Saúde. Significa que o serviço de saúde é administrado por uma dessas instituições e não diretamente pelo Estado.
Curiosamente no site da Secretaria Estadual de Saúde não há sequer uma lista com todos os hospitais, ambulatórios médicos de especialidades (AMEs) e serviços de diagnóstico administrados por OSS. É preciso garimpar na internet, nome por nome, para saber se o serviço X ou Y é tocado por OSS. É desafio até para pessoas acostumadas a pesquisar em Diário Oficial. Mas quem se der a este trabalhão – às vezes é preciso telefonar ao estabelecimento para ter certeza –, vai comprovar o óbvio: a terceirização, de vento em popa, da saúde pública do Estado de São Paulo.
O artifício é a lei complementar nº 846, de 1998, alterada pela 62/2008, do ex-governador José Serra (PSDB), que autoriza transferir às OSS o gerenciamento de todos os hospitais públicos paulistas, novos e antigos.
“Os hospitais gerenciados por Organizações Sociais são exemplo de economia e eficiência”, diz o site da Secretaria Estadual de Saúde.
A justificativa para a expansão das OSS é “a experiência de sucesso dos últimos dez anos”. Essa, especificamente, foi anexada ao projeto de lei que Serra encaminhou à Assembleia Legislativa paulista, permitindo às OSS gerenciar não só os novos estabelecimentos de saúde (como permitia a legislação em vigor desde 1998) mas também os já existentes (até então era proibido).
Teoricamente as OSS são entidades filantrópicas. Na prática, porém, funcionam como empresas privadas, pois o contrato é por prestação de serviços.
“As OSS recebem os hospitais absolutamente aparelhados, de mão beijada. Tudo o que gastam é pago pelo governo do estado ou prefeitura. Além disso, recebem taxa de administração”, avisa o promotor Arthur Pinto Filho, da área de Saúde Pública do Ministério Público de São Paulo. “Entregar a saúde pública para as OSS evidentemente encarece a saúde e tem prazo de validade.”
No final do ano passado, o Viomundo já havia tornado público que, em 2008 e 2009, os hospitais geridos pelas OSS custaram, em média, aos cofres do Estado de São Paulo cerca de 50% mais do que os hospitais administrados diretamente pelo poder público. A mesma tendência se manteve em 2010, revela o cruzamento de dados dos relatórios das OSS com informações do Sistema de Gerenciamento da Execução Orçamentária do Estado de São Paulo (SIGEO)
No final de 2010, o Viomundo também revelou que, de 2006 a 2009, os gastos com as OSS saltaram de R$ 910 milhões para R$ 1,96 bilhão. Uma subida de 114%. No mesmo período, o orçamento do Estado cresceu 47%. Ou seja, as despesas do Estado de São Paulo com a terceirização da saúde cresceram mais que o dobro do aumento do orçamento público.
Mas a situação é bem mais complicada. O Estado de São Paulo tem 34 hospitais públicos geridos por OSS. Alguns são por meio de convênios, feitos normalmente com fundações de universidades públicas. A maioria é por contratos de gestão, geralmente executados por instituições privadas ou filantrópicas.
Até o início de junho, 22 dos 34 hospitais públicos do estado de São Paulo geridos por OSS haviam publicado balanço referente a 2010.
Desses 22, apenas quatro ainda têm patrimônio positivo. Um deles é o Hospital Brigadeiro, na capital paulista, privatizado em janeiro de 2010 e gerido pela Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, conhecida pela sigla SPDM. Os demais são os hospitais Regional Porto Primavera (Rosana), Estadual João Paulo II (José do Rio Preto) e Regional de Presidente Prudente (antigo Hospital Universitário). Todos novos e administrados pela Associação Lar São Francisco de Assis na Providência de Deus.
Os outros 18 hospitais apresentaram patrimônio negativo, ou seja, passivo maior do que o ativo. Portanto, dos que já divulgaram o balanço de 2010, 80% estão “quebrados”.
Atente bem à tabela abaixo. Ela foi elaborada com base em pesquisa feita nos balanços publicados no Diário Oficial do Estado de São Paulo.
Resultado: Em 2010, o déficit desses hospitais foi de R$ 71,98 milhões. Mas o rombo acumulado dos 18 chega a R$ 147,18 milhões.
70% DOS EQUIPAMENTOS GERIDOS POR OSS TIVERAM DÉFICIT EM 2010
70% DOS EQUIPAMENTOS GERIDOS POR OSS TIVERAM DÉFICIT EM 2010
O sinal vermelho foi dado nos próprios balanços. Sobre o do Hospital Estadual do Itaim Paulista, gerido pela Casa de Saúde Santa Marcelina, a Cokinos & Associados Auditores Independentes S/S adverte:
“Conforme descrito na Nota Explicativa n.º 14, a Entidade apresentou déficit de R$ 3.227.700 durante o exercício findo em 31 de dezembro de2010 e, naquela data, o seu passivo total, excedia o seu ativo total em R$ 3.804.984. A Organização dependerá do repasse de verbas complementares futuras afim de obter o reequilíbrio econômico-financeiro para a manutenção normal de suas operações.”
A situação dos ambulatórios médicos de especialidades (AMEs) também é muito grave. Dos 27 existentes, 17 tiveram déficit em 2010. Entre eles, o AME Heliópolis (antigo Hospital Heliópolis), administrado pelo Seconci-SP (Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo).
Em 2009, esse AME, que ironicamente se chama Dr. Luiz Roberto Barradas Barata, tinha patrimônio de R$ 3,8 milhões. Porém, devido ao déficit de R$ 6 milhões em 2010, seu passivo já atinge R$ 2,2 milhões. Barradas, ex-secretário da Saúde do Estado de São Paulo e falecido em 2010, foi o autor da justificativa anexada por Serra à mensagem enviada, em novembro de 2008, à Assembleia para mudar a lei das OSS.
Resumo do buraco: dos 58 hospitais, AMEs e serviços de diagnóstico do estado de São Paulo geridos OSS por contrato de gestão, 41 tiveram déficit em 2010, segundo o relatório das OSS publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo, publicado em abril de 2011. O que representa 70%.
SECONCI, SPDM E FUNDAÇÃO ABC NÃO RESPONDEM
Esta repórter contatou as OSS responsáveis pelos hospitais com déficit para saber o motivo dessa situação.
O Seconci-SP não respondeu, apesar de diversos telefonemas e emails para a sua assessoria de imprensa. O Seconci administra os hospitais Geral de Itapecerica da Serra, Estadual de Vila Alpina, Regional de Cotia, Estadual de Sapobemba e AME Heliópolis. Por meio de convênios com a prefeitura de São Paulo, também cuida de cinco AMAs (unidades de Assistência Médica Ambulatorial). Abaixo resumo do balanço do Estadual de Vila Alpina.
A SPDM, ligada à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) não quis se manifestar. Por meio de sua assessora de imprensa, disse que só a Secretaria Estadual de Saúde poderia dar esclarecimentos. A SPDM gerencia nove hospitais no estado de São Paulo, sendo quatro estaduais: Brigadeiro e Geral de Pirajussara, na capital, Luzia de Pinho Melo, em Mogi das Cruzes, e Estadual de Diadema.
A Casa de Saúde Santa Marcelina achou melhor que o diretor de cada hospital esclarecesse o déficit.
“Há vários motivos para o prejuízo no ano que passou, mas o principal, responsável por mais de 90% dessa situação, é o orçamento inadequado. Como aconteceu em 2010, 2009 e alguns outros anos anteriores, as partes negociavam já sabendo que o dinheiro não seria suficiente para cobrir as metas de atendimento”, explica a esta repórter Carlos Alberto Ferreira, diretor do Hospital Estadual Itaim. “Só que, geralmente lá por setembro, outubro ou novembro, se reviam os valores e um termo aditivo de contrato era assinado para cobrir a diferença. Em 2010, devido à morte do doutor Barradas e mudança de secretário, isso não aconteceu plenamente. Daí por que o dinheiro não deu.”
Já a responsável pelo Hospital Estadual de Itaquaquecetuba não quis falar. Recomendou-me contatar a assessoria de imprensa da Secretaria Estadual de Saúde.
A Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo é gestora de vários serviços de saúde estaduais, entre os quais os hospitais Geral de Guarulhos, Estadual de Francisco Morato, Estadual de Franco da Rocha “Dr. Albano da Franca Rocha Sobrinho”, Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário e o Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental de Franco da Rocha – Complexo Hospitalar do Juquery.
Resposta ao Viomundo: “No ano passado, parte dos recursos foi contingenciada. Atualmente a situação está equilibrada”.
A Associação Congregação de Santa Catarina, do qual o Hospital Santa Catarina faz parte, administra dez instituições públicas paulistas: os hospitais gerais de Pedreira, Itapevi e Grajaú, o Centro de Referência do Idoso da Zona Norte, o Pólo de Atenção Intensiva em Saúde Mental, os AME Jardim dos Prados, Itapevi e Interlagos, o Centro de Análises Clínicas de São Paulo (Ceac) e Serviço de Diagnóstico por Imagem (Sedi 1).
Resposta ao Viomundo:
“Está havendo uma negociação junto ao governo do Estado para adequação entre orçamento e metas assistenciais para 90% das casas administradas pela Associação.Nos últimos 3 anos (2009, 2010 e 2011), o governo do Estado tem basicamente mantido as metas assistenciais e reduzido os orçamentos em 5% a cada ano, por conta de um contingenciamento. Portanto, nos últimos três anos houve uma redução de 15% no orçamento e as metas foram as mesmas.Os Hospitais Pedreira e Itapevi apresentaram um déficit, pois os recursos não estão condizentes com as metas estipuladas. Sendo assim, a Associação Congregação de Santa Catarina, assim como outras entidades filantrópicas, está em negociação com o governo do Estado para alinhar o orçamento às metas ou as metas ao orçamento”.
Abaixo o resumo do balanço do Hospital de Pedreira.
Acontece que o Hospital Estadual de Pedreira, por exemplo, realizou em 2010 menos do que o foi contratado:
Ou seja, esse hospital gerido pela Associação Congregação Santa Catarina realizou quase 8% a menos das metas físicas contratadas. Porém, recebeu R$ 5,6 milhões a mais do que o valor previsto, como mostra a tabela abaixo feita com base no levantamento no Diário Oficial. Já os hospitais Itapevi e Grajaú, administrados pela mesma OSS, receberam praticamente o valor contratado.
Os hospitais Estadual de Guarulhos e de Francisco Morato, administrados pela Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, receberam a mais R$5.474.3815,50 e R$1.040.706,00, respectivamente.
Detalhe: Pedreira, Guarulhos e Francisco Morato não são exceção; em geral, há acréscimos nos valores contratados inicialmente.
Afinal de contas, o governo paulista realmente contingenciou recursos, como alegam algumas OSS? Tecnicamente recurso contingenciado é aquele previsto no orçamento e o governo congela. Ele pode vir ou não a ser repassado.
Ou as OSS não receberam o que desejavam pelos serviços prestados?
Ou será que, para ganhar a eleição estadual em 2010, o governo tucano teria estimulado as OSS a atender mais do que o previsto e posteriormente não cobriu os extras?
Ou será tudo isso junto?
Qual a mágica para as OSS continuarem operando, já que a maioria dos hospitais geridos está no vermelho? Teria o atendimento piorado ou elas resolveram fazer benemerência, trabalhando de graça para o governo estadual?
Os contratos seriam para “inglês ver”, considerando que, de antemão, as partes sabem que precisarão de aumento posterior nos valores?
A garantia seria mesmo na base de um “fio do bigode” de uma única pessoa?
O fato é que, apesar envolver recursos públicos de quase R$ 2 bilhões anuais, o negócio das OSS é uma caixa-preta que precisa ser escancarada à luz do sol de verão. Por uma razão simples: falta transparência.
Esta repórter solicitou à assessoria de imprensa da Secretaria Estadual de Saúde São Paulo o número e os nomes dos hospitais geridos diretamente pelo Estado e por OSS, tanto por contratos de gestão, quanto por convênios. Vieram apenas os números e desta forma:
Se a Secretaria Estadual de Saúde não sabe EXATAMENTE quantos hospitais são geridos pelo Estado e quantos são por OSS, quem vai saber? Ou será que não nos quis passar?
E supondo que a Secretaria Estadual de Saúde não soubesse quantos hospitais são geridos pelo Estado e quantos são por OSS – que é uma informação básica –, como vai fiscalizar os serviços e cumprimento de metas?
Insisti com a assessoria de imprensa. Precisava dos nomes dos hospitais. Em vez da resposta, foi encaminhado texto só com elogios ao modelo de OSS. Alguns trechos:
Reforcei o pedido, solicitando os nomes dos hospitais geridos por OSS por contrato de gestão e por convênio e os administrados diretamente pelo estado diretamente. Argumentei ser informação básica, de fácil acesso, pelo menos ao pessoal da Secretaria Estadual de Saúde. “É só ‘puxar’ no computador”, esta repórter argumentou na solicitação. Nada. Silêncio absoluto.
Só que os hospitais de Pedreira, Vila Alpina, Itaim Paulista, Mário Covas, Pirajussara e Diadema estão “quebrados”, lembram-se da tabela no início desta reportagem? O rombo acumulado de cada um é, respectivamente, de R$ 5,78 milhões, R$ 8,86 milhões, R$ 3,8 milhões, R$ 4,2 milhões, R$ 13,8 milhões e R$ 11,3 milhões.
Situação oposta à do Instituto do Câncer do Estado, o Icesp, inaugurado em 2008 e gerido pela Fundação Faculdade de Medicina. Seu balanço de 2010 ainda não foi publicado. Mas, segundo o relatório das OSS publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo, o Icesp teria recebido em 2010 R$ 369 milhões. Porém, só gastou R$ 242 milhões. Por que os R$ 127 milhões restantes não teriam sido gastos? A sua utilização não teria aumentado o número de pacientes tratados?
“Cadê o exemplo de economia, eficiência e excelência de gestão?”, muitos leitores devem estar perguntando. E com razão. Afinal, é como as OSS são “vendidas” pelo governo paulista e demais defensores desse sistema de administração.
Tais qualidades, na verdade, parecem ser mais marketing publicitário do que realidade. Pelo menos são os indícios dos números atuais.
Tem mais. A lei da transparência e de responsabilidade fiscal exige que as execuções orçamentária e financeira sejam disponibilizadas em tempo real na internet. Obriga, ainda, o estado a prestar esclarecimentos sobre os seus contratos para qualquer cidadão.
Porém, não há um site que reúna informações sobre os contratos e aditivos celebrados entre as Organizações Sociais de Saúde e o governo paulista. Muito menos que comunique o quanto e em quê estão sendo gastos os recursos.
Apesar das reiteradas solicitações, esta repórter não recebeu da Secretaria Estadual de Saúde até a postagem desta reportagem a lista com os nomes dos hospitais geridos diretamente pelo Estado e os por OSS.
Por que não divulgar? Seria por que o rombo acumulado das OSS paulistas, incluindo hospitais, AMEs e serviços de exames, é bem maior dos que os quase R$ 147, 18 milhões dos 18 hospitais citados?
A propósito. O desmantelamento, na semana passada, da quadrilha formada por médicos, enfermeiros e dentistas do Conjunto Hospitalar de Sorocaba, que desviava verbas dos plantões médicos e fraudava licitações, mostrou a ausência de controle sobre os recursos financeiros e os serviços prestados pelos hospitais públicos paulistas geridos pelo Estado.
Essa mesma falta de controle existe sobre as OSS. Basta ver o crescente déficit dos hospitais estaduais gerenciados por essas entidades. Aliás, se não existe transparência plena sobre um dado tão banal como a lista dos nomes dos serviços de saúde gerenciados por OSS, o que pensar sobre as informações referentes à aplicação dos recursos e aos atendimentos prestados?
Em tempo 1: O esquema de fraude em licitações e nos pontos de plantões médicos (profissionais recebiam sem trabalhar), revelado pela polícia de São Paulo na semana passada, envolveu, além do Conjunto Hospitalar de Sorocaba, funcionários de outros 11 hospitais da região de Sorocaba. Entre eles, o Hospital Geral de Itapevi, administrado por uma OSS, a Associação Congregação de Santa Catarina. O Viomundo contatou a assessoria de imprensa para saber o que a entidade tinha a dizer sobre o fato. Não houve retorno.
Em tempo 2: O médico e ex-secretário de Esporte, Cultura e Lazer Jorge Pagura, que teve o seu nome ligado ao esquema de fraude do Centro Hospitalar de Sorocaba, é chefe da neurocirurgia do Hospital Mário Covas, em Santo André. no ABC paulista. O serviço é gerenciado por outra OSS, a Fundação ABC. O Viomundo contatou a assessoria de imprensa para saber sobre o motivo do déficit acumulado de R$ 4, 2 milhões do hospital. Ela foi uma das entidades que não nos respondeu.
Em tempo 3: Solicitamos à Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo uma avaliação sobre a situação financeira dos hospitais estaduais geridos por OSS. A assessoria de imprensa também não nos respondeu isso.
Quaisquer que sejam as respostas dessas e demais perguntas, esta repórter e os milhões de cidadãs e cidadãos de São Paulo querem saber: quem vai pagar a conta?
Conceição Lemes
*viomundo
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