A Dama de Ferro' é uma alegoria sobre o declínio do neoliberalismo
Ontem à noite, quando saí do cinema onde assistira ao filme da diretora britânica Phyllida
Lloyd, me ocorrerem três coisas. Senti uma vontada danada de beber um
uísque. Pura sugestão, é que madame Thatcher bebe o tempo inteiro do
filme. Lembrei de Getúlio Vargas e da jornalista Gilda Marinho, uma
figura meio folclórica no cenário high society porto-alegrense dos anos 70 e 80.
Me explico: Gilda Marinho foi atacada
uma vez por um inimigo oculto e dado a brincadeiras pesadas e
maliciosas. Tal pessoa mandou publicar nos classificados em jornal
edição dominical um anúncio onde se vendiam dezenas ou centenas de
garrafas de uísque vazias. "Tratar com Gilda Marinho, no telefone tal" -
dizia o anúncio.
Confesso que desconhecia essa propensão à
sede da Baronesa Thatcher. Sendo assim, vejo que a guerra das Malvinas
foi um verdadeiro duelo de pinguços. Ninguém desconhecia na Argentina e
arredores que o general Leopoldo Galtieri, presidente-ditador na época
da guerra pelas ilhas do Atlântico Sul, era outro que abrigava uma pedra
de sal na garganta e buscava a cura através da ingestão de hectolitros
de álcool.
E falando sobre Getúlio Vargas já
podemos comentar o filme sobre a dama de ferro. A imortal frase de
Vargas, na hora da morte, "saio da vida para entrar na história", não
serve para a senhora Thatcher. Ela ainda vive, mas a história já a
abandonou, antes mesmo de convidá-la a adentrar o seu templo de glórias e
ilusões.
A qualidade do filme de Phyllida Lloyd
está justamente no fato de não entrar muito no mérito político da
ex-primeira ministra da Grã-Bretanha. Ao mostrá-la no fim da vida, já
enferma pelo Alzheimer, açoitada por fantasmas os mais diversos, mas em
especial, Denis, o marido pimentinha, Phyllida faz um julgamento branco
do legado político da Baronesa.
David Cameron, o atual primeiro-ministro
britânico, igualmente conservador como ela, não gostou do filme, e
perguntou "por que logo agora aparece um filme sobre Thatcher?".
Ora, a resposta parece óbvia. Tudo
aquilo que foi sólido e sagrado, tudo o que foi construído/destruído por
Thatcher agora se desmancha no ar e é profanado. Margaret não saiu da
vida e nem entrou para a história.
Margaret é um zumbi condenado a escutar
vozes e a ter que ligar todos os eletrodomésticos da sua vetusta
residência para ter um segundo de sossego e paz de espírito. Como já não
pode mais fazer uma faxina nacional no País, o faz no seu quarto
atulhado de lembranças e espectros zombeteiros.
A
abertura do filme é brilhante. Margaret apanha meio litro de leite numa
mercearia de esquina e não é reconhecida por ninguém. Ao contrário, é
ignorada com ênfase de má educação, um sujeito se atravessa no balcão e
não respeita a fila do caixa, um negro jovem e muito alto roça o seu
traseiro e não presta a atenção à sua idade e sobretudo à sua antiga
condição de primeira mandatária do País.
Ela sente que voltou a ser
a moça do cotidiano (no sentido lukacsiano), quando auxiliava o seu pai
na quitanda da família, interior da velha Inglaterra. Chega em casa e
tem uma pilha de livros para autografar, até que volta a assinar
Margaret Roberts, seu nome de solteira. O inconsciente é malcriado,
mesmo não consultado emite seus pareceres sobre nós mesmos, e sobretudo
contra nós mesmos.
O carrossel da história
volta ao seu ponto de partida. Tudo o que fez de sagrado, está sendo
profanado. Ela já não se reconhece no mundo por ela forjado.
'A Dama de Ferro' é um filme sobre o
ocaso do neoliberalismo, mesmo sem citá-lo uma única vez e ainda que
modelado na linguagem da subjetividade de uma senhora muito idosa
governada por sua memória, nem sempre amigável.
Margaret Thatcher foi a face do
neoliberalismo, agora está no declínio da existência, cumpre um roteiro
meramente biológico, porque a história já a rechaçou e a economia não
mais a reconhece.
Margaret sente que já não é mais deste
mundo e o fantasma de Denis Thatcher (o marido, que morreu em 2003)
insiste em apontar-lhe o excesso de ambição pessoal e o excesso de
uísque. Neste ponto, a diretora e a roteirista (Abi Morgan) usam um
recurso narrativo de sutil mas aguda crueldade: os fantasmas são uma
forma de autocrítica para quem - arrogante - é incapaz de fazer
autocrítica.
O fenômeno Thatcher resultou da profunda crise de acumulação do capital experimentada pela Grã-Bretanha nos anos 1970. O sindicalismo foi muito organizado e logrou obter êxito na disputa por melhores salários, condições de trabalho e demais conquistas sociais do chamado welfare state.
Enquanto houve excedente para ser
dividido com o capital, os trabalhadores ingleses souberam negociar de
forma a se apropriar de parte do bolo produtivo. Quando sobreveio a
crise escasseou a redistribuição, surgiram os conflitos, as greves (que
não ocorriam desde 1926), a estagflação (inflação de 26%) e rápido
aumento das taxas de desemprego (cerca de 1 milhão de pessoas, em 1975).
Passou a haver crise de legitimidade,
aumento das dificuldades fiscais, crise na balança de pagamento e
monumentais deficits orçamentários. Trabalhistas e conservadores
(partido de Thatcher) se revezavam no poder entre 1974 e 1979, com
aprofundamento crescente da crise e recrudescimento das greves
(transportes, limpeza urbana, setor saúde e inclusive coveiros fizeram
paralisações prolongadas).
É neste contexto de
profunda crise do capital pondo fim a uma prolongada política de
aliança de classes entre os trabalhadores e a grande burguesia decadente
que emerge ascensional a estrela de Maggie Thatcher.
O filme mostra a dificuldade sentida por ela para se impor junto ao establishment
do partido conservador, não só por ser mulher, mas sobretudo por ser
filha de um pastor metodista e pequeno comerciante do Norte do País. Uma
outsider adventícia no seio do baronato que foi e é íntimo da Coroa inglesa.
Pois, para não decepcionar la crema y nata
da velha nobreza inglesa, a filha do quitandeiro (como a chamavam à
socapa nos corredores do partido) fez de tudo para se impor como a mais
realista do Reino Unido.
Assumiu o poder em maio de 1979, já
mostrando a que veio. Fez provocações diretas aos então fortíssimos
sindicatos de trabalhadores e esgarçou o frágil tecido das relações
capital/trabalho ao máximo. Conseguiu com isso, estimular muitas greves
prolongadas e que paralisaram o país, por muitos meses. A greve dos
mineiros durou quase um ano de confrontos entre o Estado e os
sindicatos. Tudo o que ela desejava, politicamente.
O desmantelamento do Estado de bem-estar
social atacou as áreas da saúde, assistência social, educação pública,
Universidades, a burocracia estatal e o poder judiciário. O salário
mínimo foi extinto e os impostos passaram a ser regressivos (poll tax,
onde os ricos pagam menos e os trabalhadores pagam mais impostos), como
forma de estimular os investimentos privados, já que o Estado estava se
exonerando da economia.
Thatcher comprava briga em várias
frentes ao mesmo tempo e procurava se legitimar através de um programa
habitacional de venda direta das propriedades do Estado aos seus antigos
locatários.
O
discurso para conseguir o consentimento legitimador calcava nas
consignas do ultraliberalismo de Friedrich Hayek: direito de propriedade
individual (o plano habitacional garantia isso), cultura do
empreendedorismo e do individualismo, regras de controle,
responsabilidade financeira e produtividade nas instituições públicas,
estímulo aos valores conservadores da classe média (Thatcher é o próprio
triunfo da classe média), incentivo ao consumo intensivo à custa do
endividamento em massa dos assalariados (como forma de criar um
compromisso inescapável com o sistema).
A partir deste ponto, o centro da vida é
o mercado. A mercadificação de tudo significa direitos de propriedade
sobre processos, coisas e relações sociais (Harvey), supondo que tudo
sob o céu é passível de ser atribuído um preço - em dinheiro - e
portanto negociável nos termos de um contrato legal.
É o surgimento do chamado homem
unidimensional, de que falava Marcuse ainda em 1964. O mercado (e as
mercadorias) é um guia próprio para todas as ações humanas, ou seja, o
mercado é uma ética.
A meu ver o mais grave dos legados da era Thatcher (1979-1990) é a tentativa de abolição da esfera política.
A queda de braço com o movimento
sindical visava a eliminação física dos trabalhadores, como atores
sociais reconhecidos. Ela decidiu importar carvão mineral para não
negociar a agenda dos mineiros ingleses.
Preferiu comprometer mais e mais as
finanças já combalidas do Estado a recuar um milímetro no seu intento de
esmagar a capacidade política e orgânica dos sindicatos.
A anulação e a subsunção da esfera
política às desigualdades do mercado é a suprema maldade do
ultraliberalismo thatcherista. É o seu legado mais forte e permanente.
Se a política diz respeito à coexistência e associação de homens
diferentes, como nos ensina Hannah Arendt, já se vê que a sua derrocada
representa um retrocesso civilizatório.
Aniquilar o fazer político é o mesmo que
erradicar a pluralidade humana, estreitar a capacidade que adquirimos
culturalmente de buscar objetivos que contemplem o diferente e o
desigual, numa síntese dinâmica, provisória e em vias de permanente
aperfeiçoamento.
Matar a política é o mesmo que condenar o homem a renunciar a sua liberdade, é mantê-lo escravo das suas próprias contingências, batendo cabeça num eterno cotidiano opressivo e redutor.
Matar a política é o mesmo que condenar o homem a renunciar a sua liberdade, é mantê-lo escravo das suas próprias contingências, batendo cabeça num eterno cotidiano opressivo e redutor.
O neoliberalismo é uma fórmula perversa de apagar a política em favor da ditadura dos mercados.
Os governos que sucederam a
primeira-ministra Thatcher conseguiram abolir algumas medidas
antissociais da ex-quitandeira, como: o salário mínimo (Tony Blair,
trabalhista) e o imposto regressivo (John Major, conservador), mas a
desqualificação da esfera política está sendo de difícil reversão, até
porque isso se alastrou pelo mundo todo, com a crescente importância da
economia sobre a política.
Nem a duplicação da taxa de pobreza na
Grã-Bretanha, durante os 11 anos de Maggie no poder, pode ter
repercussões tão deletérias como o ataque à política.
Talvez por esse motivo o filme de Phyllida Lloyd
tenha igualmente um olhar tão distante da política propriamente dita,
embora não seja um filme apolítico. Não o é. Mas, não falar não
significa não ser.
'A Dama de Ferro' é um filme fortemente
político, exageradamente politizado. Uma alegoria se notabiliza
precisamente por não falar diretamente sobre a sua identidade. Uma
alegoria é sempre um disfarce, uma representação do objeto ao qual se
refere.
A diretora Phyllida e a roteirista Abi
quiseram falar do neoliberalismo, justamente no momento do seu lento e
inexorável crepúsculo, e o fizeram falando e narrando sobre Thatcher -
hoje Baronesa Thatcher de Kesteven (viram ela também virou la crema y nata da sociedade british!) - no ocaso de sua vida biológica. Simples e direto como pôr um ovo em pé.
Não é à toa que a direita britânica, a comerçar pelo primeiro-ministro Cameron, não gostou do filme.
Claro,
foram cínicos, alegaram que a ex-primeira-ministra foi retratada na sua
demência senil, que isso é cruel, etc. Mas jamais admitiram que falar
de Thatcher é falar da senilidade do próprio sistemão que ela criou.
Por esse singelo motivo eu reputo o
filme 'A Dama de Ferro' de genial. E, depois, mulheres fazendo cinema,
sempre resulta em algo inteligente e instigante.
*comtextolivre
Nenhum comentário:
Postar um comentário