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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, abril 24, 2012

“Em 64, acabou tudo”, diz ex-piloto de Jango – Especial para o QTMD?

 

 do QTMD?

Momento em que o Comandante Mello Bastos contava como fez para que o avião em que trouxe João Goulart de Buenos Aires para Porto Alegre, em 1961, não fosse atacado por aviões de caça: "Voei baixinho". Foto: Ana Helena Tavares
Paulo Mello Bastos, ex-piloto da Aeronáutica e da Varig, resgatou uma caixa-preta. Não a de um avião acidentado, mas a de um país que foi impedido de voar.
Ana Helena Tavares
O livro “A caixa-preta do golpe” conta como o que aconteceu em 1º de Abril de 1964 tolheu o sonho dos trabalhadores brasileiros de construírem um país mais justo através das reformas de base. Seu autor escreve com propriedade: era líder sindical atuante e foi ele quem pilotou o avião trazendo Jango de Buenos Aires para Porto Alegre, em 1961.
O então vice-presidente voltava da China para assumir a presidência, após a renúncia de Jânio Quadros. O voo foi tenso, pois o avião estava ameaçado de ser abatido por militares brasileiros que queriam dar o golpe já naquele ano. Com a criação da “Cadeia da Legalidade”, Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, havia feito da capital gaúcha o pouso mais seguro.
Com invejável lucidez e incrível vitalidade aos 94 anos, o comandante Mello Bastos contou, em entrevista exclusiva ao “Quem tem medo da democracia?”, sua bela história.
Correio Aéreo e definição de fronteiras
“Quando Getúlio estava no poder, havia fazendeiros paraguaios com suas terras dentro do Brasil. Dois terços do Exército brasileiro eram aquartelados no sul. Então, Getúlio criou a “Marcha para o Oeste”. Começou devolvendo todos os troféus que o Brasil tinha ganhado na Guerra do Paraguai. Um gesto simpático para que as fronteiras fossem bem definidas.”.
“Eu fazia correio aéreo (pela Aeronáutica), de norte a sul, por todas as áreas fronteiriças, e ajudei nessa definição. Depois, passei para a reserva, no posto de tenente-coronel, com 20 anos de serviço ativo (em 1953). Cortei todas as minhas vinculações, saí do Clube Militar, passei a ter uma vida civil e fui para a Varig, onde fiquei 10 anos”, contou.
Em São Borja com Getúlio
Mello Bastos conheceu Getúlio Vargas na intimidade de sua fazenda em São Borja (RS): “Fui Lá (no final da década de 40), com uma comitiva, para convencê-lo a se candidatar em 50, já que não tinham cassado os seus direitos políticos, e a criar Petrobras. Ele lá com seu charutão… Aceitou, elegeu-se e criamos a Petrobras”.
Em 1954, Getúlio se suicidou. “Ele havia chamado os generais para o Catete, para discutir a situação do Brasil perante o mundo, as conspirações, os golpes… Só um, o Brigadeiro Epaminondas, ministro da Aeronáutica, se definiu a favor de Getúlio. Os outros ficaram calados. Disse Getúlio: ‘Já que os senhores não se decidem, decido eu’. Saiu da reunião, subiu para o quarto, deu um tiro no coração e morreu.”
De acordo com Mello Bastos, logo após o suicídio de Getúlio, “foi decretada intervenção em todos os sindicatos”.
JK: “criador e vaidoso”
Falou ainda sobre Juscelino Kubistchek: “Fez um bom governo. Era um sujeito criador e muito vaidoso.” Sobre a criação de Brasília, disse que “é um capítulo à parte em nossa história.”
E garantiu que não foi ideia de JK.“Era ideia da coroa. Para evitar ataques de navios piratas, o imperador (D. Pedro II) pensou em transferir a capital para o interior, mas não fez”, historiou Mello Bastos.
Jânio Quadros: “inteligente, mas mau caráter”
Sobre Jânio Quadros, disse que “era inteligente, mas muito mau caráter. Armou uma visita de Jango à China comunista.”. E descreveu, em detalhes, como fez João Goulart chegar são e salvo ao Brasil naquele ano de quase golpe (1961).
O então piloto soube da renúncia voando: “Eu ia do Rio de Janeiro para Uberaba, levando 30 ou 40 fazendeiros a um leilão de gado, sempre havia isso. Eu estava na escuta, sabia da agitação e anunciei: o presidente Jânio Quadros renunciou.”
“Parece que eu joguei toneladas de gelo, foi um silêncio absoluto. Um caos… Jango estava na China, voltou por Paris e Nova York, onde conferenciou com Kennedy. E, em lugar de fazer Nova York – Rio de Janeiro, como até hoje se faz, ele veio pelo Pacífico. E chegou a Buenos Aires. O Brasil todo revoltado, armado, aquela complicação toda.”
O voo histórico
“A Varig sabia que eu era janguista e, para resguardar, fui buscá-lo. Eu era comandante de avião a jato, Caravele, beleza de avião. Então, fiz um plano. Em vez de vir a 40 mil pés, 13 mil metros, eu vim a 300 pés, infringindo. Porque, como o avião de caça ataca, com metralhadora, de baixo para cima, eu vindo baixinho ele não tem espaço para me atacar, senão ele bate. Eu que trouxe o Jango de Buenos Aires para Porto Alegre”, relatou orgulhoso da missão cumprida.
Logo após deixar o presidente em segurança, Mello Bastos foi de Porto Alegre para São Paulo, onde recebeu voz de prisão.
“Jango ficou em Porto Alegre e, naquela mesma noite, eu fiz um voo para Natal. Pousei em São Paulo. Estava tudo revoltado lá… Mandaram me prender. Muito embora eu estivesse na reserva (como Coronel da Aeronáutica), o cara que queria me prender tinha dois anos atrás de mim na antiguidade (patente inferior).”
“Então, eu disse: Mudou agora, é?! Onde é que já se viu?! Sou mais antigo que você e você vai me prender?! Me dá essa pistola aí, eu disse. E ele: ‘Ah, não vou lhe prender… É que querem falar com você lá dentro’. Fui… Entrei lá… Todos os oficiais numa sala. Poxa, eu tinha trazido o presidente da República e eu sabia de tudo, né…”
“Mas, em determinadas horas, eu sou meio de teatro… Entrei acenando e dizendo: boa noite, boa noite, pode ficar todo mundo descansadinho, podem voltar para casa, porque o presidente da República, Dr. João Goulart, eu já trouxe, deixei em Porto Alegre para ele tomar um banhozinho, mudar de roupa para assumir a presidência.”, contou gesticulando os acenos e continências daquela noite.
“O céu de Brigadeiro é aquele sem nuvens, perfeito para voar, mas eu voava em qualquer tempo. Sempre exerci a profissão com vontade, com amor, buscando dar o meu melhor. E não tem mistério para isso: é só se dedicar.”, assegurou o comandante.
“Greve Mello Bastos”
Em 1963, ele foi demitido da Varig, deflagrando uma grande paralisação dos transportes no Brasil – conhecida como “greve Mello Bastos”. A convocação foi feita pelo CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) e atendida não apenas por aeroviários e aeronautas, mas também por trabalhadores de transportes ferroviários, marítimos e petroleiros.
Toda essa solidariedade se explica. Além de comandante da Varig, Mello Bastos era diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores de Transportes Marítimos, Fluviais e Aéreos, e presidente-fundador da Federação. Se não bastasse, junto com Dante Pellacani, Hércules Corrêa e Oswaldo Pacheco, compunha o secretariado político do CGT.
“Foi aí que eu peguei a minha ‘ficha de comunista’… Engraçado… Um cara cujo salário era 10 mil dólares ia lutar para rebaixar o salário? Isso não existia!”, frisou.
Petróleo e maniqueísmo
Segundo Mello Bastos, a luta pelo petróleo foi “o que definiu a nação” e deu o tom do maniqueísmo que caracterizou a época: “Eram chamados de comunistas todos os militares que defendiam que a Petrobras tinha que ser inteiramente brasileira. Nós chamávamos os outros de entreguistas.”, lembrou.
A mídia e o golpe
“Maria Antonieta disse diante de uma multidão: ‘Por que não dão brioche para o povo?’” Mello Bastos revelou acreditar que é isso o que a grande mídia, que ele definiu como “representante da alta burguesia”, diz diariamente ao povo e foi o que disse em 64 para desvirtuar as atenções sobre o que realmente estava acontecendo e ajudar no golpe. Para ele, “se não houvesse o jornalismo, tudo seria pior. Mas é preciso que só se procure o caminho da verdade. Sendo assim, é insubstituível na sociedade”.
Preso na embaixada
Em 09 de Abril de 1964, poucos dias do golpe, Paulo Mello Bastos teve os direitos políticos cassados pelo Ato Institucional – Nº 1. No dia seguinte, o jurista Clóvis Ramalhete, já falecido e que era próximo politicamente ao então líder sindical, disse que iria esperá-lo na esquina da embaixada chilena.
Corriam, no rádio, diversos boatos sobre Mello Bastos. “Um dava conta de que eu tinha sido morto na Baixada Fluminense. Outro dizia que eu tinha sido preso ferido na Baixada Santista. Que estavam me procurando, isso estavam…”.
Achando que Clóvis Ramalhete “não iria se expor” e desconfiado das intenções do jurista, com quem tinha o que definiu como “amizade de conveniência”, Mello Bastos decidiu não ir à embaixada chilena.
Foi para a uruguaia. “Eu estava todo bonito… Meu paletó era cor de petróleo. A embaixada do Uruguai estava cheia. Já tinha umas 20 autoridades lá dentro. Polícia na porta. Não entrava ninguém. Tive que dar uma “chave de galão”, que é quando o cara impõe sua autoridade pelo posto (hoje seria uma “carteirada”). Mostrei minha carteira de coronel e consegui entrar.”
“Um cara me perguntou: ‘O que o Senhor quer?’ Achei um desaforo num clima daqueles… Mandei que chamasse o embaixador e rápido. Ele foi… O embaixador chegou e me perguntou: ‘O Senhor é o Comandante Mello Bastos?’ Digo:sou.”
“E fiquei lá 71 dias até o governo uruguaio mandar um avião me buscar. Um amigo me deu o livro “O crime do século”, sobre o assassinato de Kennedy, para eu levar. E fiquei 3 anos e 2 meses exilado no Uruguai. Tinha gente infiltrada lá.”, garantiu.
A infiltrada
Mello Bastos contou sobre uma jornalista, casada com um fotógrafo, chamada Madalena: “Ela era do PTB e chegou a escrever matérias para o partido. Um dia, nos encontramos saindo da casa de Brizola (no exílio). Ela me perguntou: ‘você é comunista?’ Eu disse: ‘então você não sabe que a pessoa quando diz que é comunista é logo perseguida?! Me admira você, uma jornalista, bem informada, me perguntar isso.’ Respondi que não sou, porque não sou mesmo. E se fosse, também diria que não. Anos mais tarde, já no Brasil, eu li uma matéria que revelava que ela tinha sido ‘cachorra da ditadura’. Quer dizer, estava lá no Uruguai para passar informações sobre o comportamento dos exilados”.
Um delegado agente da CIA
“Eu morava com um general no exílio. Um dia tocou o telefone às 4h da manhã. Era a Polícia de Segurança. Disseram: ‘o Senhor está convidado a ir à delegacia’. Eu disse: ‘não aceito o convite!’ E disseram: ‘tem que ir de qualquer maneira’. Fui… Cheguei lá e dei de cara com um delegado que eu sabia que era agente da CIA. Ele era também juiz de futebol.”
“Primeiro, ele me disse uma verdade: ‘o Senhor esteve na fronteira.’ Sim, estive. Fui buscar minha esposa (que ainda é viva e acompanhou a entrevista). ‘O Senhor cruzou a fronteira’. Não, não cruzei.”
“‘O Senhor sabe que está ameaçado de morte?’ Digo: ‘é difícil, não tenho inimigos’. E ele disse: ‘tem muitos! A sua segurança está por um fio e o governo uruguaio tem compromisso com a vida do Senhor. Queremos pôr vigilância na sua porta’.”
“Digo: ‘eu não quero!’ E ele disse: ‘então, o Senhor vai assinar uma declaração’. Digo: ‘redija!’ Ele redigiu e eu assinei, eximindo a polícia uruguaia de qualquer ocorrência que atingisse a minha segurança, da violência até a morte.”
Convivência com Jango no exílio
Segundo Mello Bastos, João Goulart era “uma figura humana maravilhosa. Não perseguia nem discriminava e não se vingava de ninguém, de nada. Era um homem pacifista.”. Além de ter sido piloto do avião presidencial, Mello Bastos conviveu durante algum tempo com Jango no exílio. “Havia uns doze sargentos exilados conosco. Jango todo mês pagava a estadia dos doze. Ele dava o dinheiro para mim e para o Waldir Pires, que recentemente foi ministro da Defesa, e nós repassávamos para a dona da pensão. Era gozado… Ele tinha uma perna dura, com defeito. Virava pra gente, metia a mão no bolso e já estava com o dinheiro contado.”
Reformas de base
Sobre as reformas de base, defendidas por João Goulart e apoiadas pelo CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), Mello Bastos disse que a intenção era que, para debater as propostas, fosse formada uma Assembleia Nacional Constituinte: “Queríamos promover debates durante 1 ou 2 anos. Em cidades, vilas, fazendas, reunindo todos os sindicatos. Depois de todo mundo palpitar, cada categoria escolheria seus representantes para uma Constituinte. Tinha até um cara, (Francisco) Julião, de Pernambuco, que dizia: ‘Reforma Agrária – na lei ou na marra’. Nada de golpe! Quando chegou em 64, acabou tudo. Foi dado o golpe e todo mundo teve que desaparecer não sei como.”, lamentou-se.
CGT
Contando sobre a criação do CGT, o ex-líder sindical fez questão de explicar a origem da palavra “pelego”: “Getúlio tinha dividido o movimento sindical à semelhança da organização italiana fascista, de Mussolini. Naquela época, na Itália como aqui, o presidente da Confederação (dos pilotos) tinha um belo carro e levava tudo na base da influência política. Vivia cheio de pelegos em volta.”, contextualizou Mello Bastos.
Para, em seguida, definir: “Pelego é o couro do carneiro que as pessoas usavam muito no Rio Grande do Sul para se cobrirem por causa do frio. Então, passou a ser usado para designar o cara que fazia tudo só para se proteger e era menino de recado do Ministro do Trabalho.”.
E continuou: “Construímos o CGT para dar combate aos pelegos. Começaram a achar que estávamos querendo comandar a política do país… O que não era… Miguel Arraes, por exemplo, era nosso companheiro. Sarney quase foi para o nosso lado, mas, quando viu que a coisa ficou preta, caiu fora…”.
José Sarney: “nunca foi de confiança”
Instigado a detalhar sua opinião sobre o atual presidente do Senado, Mello Bastos ponderou: “Ao substituir Tancredo, Sarney prestou um grande serviço ao país. Pacificou e evitou uma guerra civil, porque o homem no qual se tinha esperança morreu, ficou um vazio e os militares estavam com as armas nas mãos. Prestou um ‘servição’, mas nunca foi de confiança”.  
Corrupção na ditadura
“Nossa senhora, como havia!, garantiu Mello Bastos. “Você acha que o (Mário) Andreazza construiu a ponte Rio-Niterói (batizada de ‘Costa e Silva’) com dinheiro que ganhou de herança? A estrada Rio-Teresópolis é outro exemplo. E digo mais: eu trabalhei em empresa de consultoria em engenharia. Conheci o pai do Eike Batista: Eliezer Batista. Sei bem como esses caras ganham dinheiro.”.
Volta do exílio e prisão
Mello Bastos voltou do exílio em 1967. Estava clandestino e era considerado morto. Primeiro foi para São Paulo, em seguida para o Rio de Janeiro: “Eu não podia sair de casa. Mas tinha amigos importantes que me diziam: ‘você tem que colocar a cara de fora!’ Foi o que eu fiz… Vendi meu carro, um fusca vagabundo, e comprei um táxi. Trabalhei de taxista. Saía cedinho de casa e nem saía do carro para comer.”
“Até um dia que me prenderam. Perguntei: ‘por ordem de quem?’ Responderam: ‘do chefe de polícia’. E eu: ‘Por quê?’ E eles: ‘ah, comandante! Nós sabemos de tudo… O senhor veio do Uruguai, pousou no Galeão, depois foi para a Tchecoslováquia, passou uma temporada lá, voltou pro Galeão de novo e agora está aqui na clandestinidade’. Digo: ‘meus parabéns! Não foi nada disso!’ Já viu que os caras estavam por fora, né…”
“Aí me levaram para o DOPs. Num regime ditatorial, não fazia diferença eu ser coronel…  Quiseram que eu fizesse uma declaração de bens… Depois, pediram pra eu fazer uma declaração sobre como voltei pro Brasil, como cruzei a fronteira, quem me trouxe… Menti. A verdade é que voltei de ônibus, com identidade falsa, etc…. ”
Filha torturada
Mello Bastos foi solto em pouco tempo e não chegou a ser torturado, mas sua filha, a jornalista Solange Bastos, que também acompanhou a entrevista, foi. “Violentamente, no DOI-CODI”, conta o pai. Na época, ela era aluna do Colégio de Aplicação na Lagoa (Rio de Janeiro) e tinha uma professora que era do Partido Comunista. “Eu nunca incentivei meus filhos à participação política”, garantiu Mello Bastos. “Mas ela quis ir para o Chile, estudar. Estava lá quando Allende caiu. Participou de um panelaço lá. E, quando voltou, foi presa. Posta em câmara de gelo, etc…”.
A luta pela anistia
Como narra em seu livro “Bastidores da Anistia”, Mello Bastos ajudou a construir a Lei de Anistia. “Fui para Brasília (meados da década de 70). Eu era representante de nomes como Oscar Niemeyer e minha missão era iniciar uma campanha de desmoralização da ditadura no exterior. Um trabalho diário. O então 1º secretário da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), Henrique Cordeiro, um sujeito fantástico, era quem coordenava essa desmoralização.”
“Como era feito isso? Nós enviávamos para outros países (principalmente para a Europa) denúncias sobre as barbaridades que a ditadura estava fazendo aqui. Essas denúncias eram escritas e organizadas em envelopes, uns 15 ou 20 de uma vez (não podiam ser muitos para não dar na vista). E eu colocava no Correio. A imprensa europeia quase sempre publicava. Era difícil para o governo brasileiro dizer que as denúncias eram falsas. Foi um processo lento, uma lei negociada. Mas a minha tarefa eu cumpri.”
Nesse momento, o comandante, hoje completamente anistiado, vai às lágrimas. Para ele, a anistia foi mesmo “ampla, geral e irrestrita”. “Eu, na Anistia, me dediquei de corpo e alma. Um vai e vem de deputados, senadores, uma loucura… Tinha um senador alagoano, Teotônio Vilela, que liderou a campanha no Senado. Da última vez que ele entrou na ABI, o salão cheio, todos choraram” (e o comandante chora de novo).
Figueiredo: “ditador, torturador”
Ditador e torturador” foram os termos usados por Paulo Mello Bastos para definir João Batista Figueiredo, general que estava no poder na época da Lei de Anistia. Mello Bastos contou que o pai de Figueiredo participou de uma revolta em 1922 e foi anistiado, mas assegurou que a abertura política só aconteceu porque o general não teve outra saída.
“Figueiredo nunca sonhou em ser presidente, foi colocado lá, aquilo deve ter pesado nele. A pressão internacional era muito grande e o Brasil estava isolado, como está hoje a Coréia do Norte. Isso é uma coisa que influi comercialmente, em importações/exportações, dívidas, e é muito difícil para um governo controlar”, sustentou Mello Bastos. Internamente, a pressão também era grande. “Teotônio Vilela era um usineiro rico. E a Igreja também estava pressionando. E o povo, de um modo geral. Quando saiu a Lei de Anistia, foi uma festa”, lembrou jogando as mãos para o ar como quem solta papel picado.
“Congresso legítimo”
Para Mello Bastos, o Congresso que aprovou a Lei de Anistia “era legítimo e possuía deputados corajosos, que, inclusive, citavam outros países onde havia ditaduras para comparar com o Brasil”.
A execração pública como punição
“Se eu estou de um lado e você está de outro, seus dentes são iguais aos meus, você tem sofrimentos como eu tenho, a única diferença entre nós é o desejo, a fixação, de obter privilégios. Quando uma autoridade do regime dizia para um agente do Estado: ‘ou você tortura fulano ou você morre!’ claro que ele torturava. Mas para torturar alguém, por vontade, você tem que ter raiva… Ora, os torturadores nem conheciam aquelas pessoas! Então não faziam por prazer, mas para adquirir a confiança de seus superiores, promoção, vantagens, prestígio, status, dinheiro! Foi isso o que aconteceu. Ou seja, quem tinha prazer era o mandante, ele era o maior torturador, é ele que deveria ser preso. Mas todos já morreram. Quem colocou a mão para torturar tem que ser punido através da execração pública”, recomendou Mello Bastos.
E completou: “O mais importante é que os arquivos sejam abertos e que se saiba os locais onde os torturadores enterraram corpos. E que se saiba quem foram os comandantes das operações, no Araguaia, por exemplo. Se algum estiver vivo, que responda por tudo ou diga quem estava mais acima… Mas quem torturou e está ainda vivo eu, sinceramente, não prenderia. Por mim, eu fritava eles e fazia picadinho (diz rindo)… E depois mandava rezar uma missa para irem para o inferno. Agora sério: os caras já velhos vão ficar quanto tempo presos? Eu faria assim… Proibia o cara de se mudar e pendurava na porta da casa dele uma placa: ‘Aqui mora um torturador’”. 
“Levante da Juventude” e “Esculacho”
Isso já tem sido feito em alguns pontos do Brasil por um grupo, denominado “Levante da Juventude”, num movimento a que chamam “Esculacho”. Mas o ex-líder sindical sugere que isso fosse oficial. Para ele, “diante do que esses caras devem, a prisão não é nada. Matá-los também não serve. Muito pior que estar preso, onde estará protegido de ser morto, com comida e médico à disposição, é sair na rua e ser alvo de chacota. Todos apontando, gargalhando e dizendo: ‘ah, aquele cara torturou um montão’”
E que ninguém diga para Mello Bastos que isso é ‘revanchismo’… “Ora, esses caras nunca foram julgados… Eu não quero que peguem os torturadores e torturem eles!  Isso, sim, seria revanchismo! Não quero saber o que eles fizeram para fazer o mesmo com eles. Se for assim, a coisa não acaba nunca. O que diz a lei? Que tortura é crime imprescritível. Desaparecimento de corpos também. Então, que sejam julgados.”
Perguntado sobre sua opinião a respeito do comportamento dos jovens que protestaram contra a comemoração do golpe de 64 em frente ao Clube Militar, o comandante respondeu sem hesitar: “Eu acho que os jovens estão sempre certos. Eles agem sem medir as consequências porque são movidos pelo impulso e não conseguem encontrar outra maneira de influenciar no sistema. Qual o instrumento legal que eles têm? Nenhum! Então, o que lhes resta é cuspir.”
Comissão da Verdade
Mello Bastos considera que é importante que a Comissão da Verdade dê certo para “mostrar que o Brasil tem organização”. Acredita que vai dar certo, e que poderá ser uma “satisfação para a sociedade”, mas acha que deveria ser investigado apenas o período da ditadura militar e sente falta de alguém de peso liderando a Comissão. “Imagina se D. Hélder Câmara fosse vivo e estivesse à frente disso? Seria uma maravilha”, suspira.
“Muito satisfeito” com Dilma
O ex-líder sindical disse estar “muito satisfeito” com Dilma, mas “com pena” da presidente: “Ela tem que arrumar a casa… Até tem uma meia dúzia de senadores e deputados corretos… Mas, fora isso, qual o material que ela dispõe? Os partidos e os políticos que eu conheço, você conhece, todo mundo sabe… Não deve ser fácil.”
Vivemos uma “democracia política”
Segundo Mello Bastos, “o Brasil vive hoje uma democracia política, mas, devido à dependência do poder econômico, não é uma democracia social. Esta nenhum país no mundo vive. ”. E quem tem medo? “Quem tem malfeitos”, resumiu.
=> Essa entrevista é a 12ª de uma série sobre a ditadura. Clique aqui para conferir as anteriores.
*GilsonSampaio

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