A grande mídia a serviço de quadrilhas organizadas
J. Carlos de Assis, via Carta
Maior
Décadas atrás li a autobiografia do
general Reinhard Gehlen, o chefe da espionagem alemã no Leste Europeu durante a
2ª Guerra Mundial, o qual, com o fim desta e a derrota de Hitler, salvou a própria
cabeça e as cabeças de seus auxiliares mais próximos vendendo aos
norte-americanos seus arquivos e sua rede de contatos no coração da União Soviética.
Tornou-se uma legenda, pela eficiência com que organizou, nas duas situações – sob
Hitler, e sob os norte-americanos –, sua excepcional rede de espionagem contra os
soviéticos.
O fim da guerra deveria ter significado
também o seu fim. Precavido, antes da derrocada final alemã enterrou algo como 50
barris de microfilmes em montanhas da Áustria para negociá-los com os vencedores.
Deu certo. Gehlen acabou conquistando a confiança dos norte-americanos, e da própria
CIA, transferindo para eles sua lealdade e, principalmente, seus arquivos materiais
e mentais. Na antiga função, notabilizara-se sobretudo por ter sob seu comando centenas
de brilhantes jovens espiões, recrutados entre a elite dos exércitos alemães. Na
nova, manteve esses critérios.
Cerca de 4 mil agentes do antigo Reich
foram “transferidos” para os serviços de espionagem da nova Alemanha dirigidos por
Gehlen. Foram fundamentais para a organização de um serviço de informação ocidental
direcionado contra os soviéticos. Antes, não havia nenhum sistema de espionagem
estruturado nesse sentido pelos norte-americanos. Sem os serviços de Gehlen, e sem
essa “transferência”, os Estados Unidos teriam uma tremenda dificuldade na condução
ideológica de seu lado na Guerra Fria, que não se limitava apenas à espionagem,
mas também à comunicação.
Essas reminiscências me vieram à mente
com o fim da União Soviética, e com a pergunta óbvia: O que foi feito do imenso
aparato de espionagem, informação e contra-informação soviético, deixado sem pai
nem mãe enquanto o Estado se desestruturava no desgoverno Yeltsin? Sabemos que algo
dele sobreviveu nas mãos de Putin, mas até que este antigo homem de informação assumisse
o poder dezenas de milhares de espiões de dentro e de fora da União Soviética perderam
privilégios e rendas, sendo forçados a buscar outros meios de vida.
Minha intuição é que essa rede universal
de espionagem deserdada, não tendo em seu comando um general Gehlen que a negociasse
em bloco com um novo patrão – os norte-americanos não se interessariam, a não ser
pelos cabeças –, tem sido comprada no varejo por duas estruturas poderosas, que
podem pagar por ela: o sistema financeiro e a grande mídia. O sistema financeiro
usa a espionagem privada para manipular e chantagear políticos na busca de decisões
legislativas a seu favor. É uma forma agressiva de lobby, que funciona sobretudo
nos Estados Unidos.
Quanto à utilização pela mídia de
espiões descolados das estruturas formais de espionagem, tivemos a primeira evidência
mundial com o caso Murdoch na Inglaterra: esse mega-empresário das comunicações,
dono do Wall Street Journal, dentre outros jornais de direita, foi pego com a boca
na botija ao empregar espiões para grampear personalidades de várias áreas na Inglaterra
para chantageá-los com seu jornal de escândalos. Isso sugere o cruzamento de interesses
financeiros com interesses midiáticos espúrios, numa conspiração gigantesca, em
escala global, contra a democracia.
No Brasil, estamos assistindo estupefatos
ao descortinamento do conúbio inacreditável entre mídia e crime organizado: gravações
feitas pela Polícia Federal com autorização da Justiça revelam que a maior revista
do pais, Veja, teria sido regularmente
pautada por bandidos que usam espiões privados, alguns egressos do antigo SNI, para
muitas vezes forjar escândalos. Note-se que o SNI, Serviço Nacional de Informações,
foi extinto por Collor anos atrás, e seus espiões, assim como os soviéticos, foram
deixados à solta no mundo para quem pagasse melhor.
Em relação à Veja havia outros indícios de utilização de espiões, como tem sido bem
documentado pelos jornalistas Luis Nassif e Paulo Henrique Amorim. Com minha experiência
de mais de 30 anos de jornalismo ativo, e tendo eu próprio sido um dos introdutores
do jornalismo econômico investigativo na área econômica no início dos anos 80 –
portanto, ainda sob a ditadura –, desconfio de reportagens com excesso de detalhes
cronológicos, minuto a minuto – como recentemente fizeram com José Dirceu. Nenhum
repórter consegue esses detalhes relativamente a fatos passados a não ser pela mão
de um espião. Alguém os colhe, e a maioria que os colhe, colhe-os para vender.
Como outras revistas de direita, Veja paga pelo material, na medida em que
rende aumento de circulação, pondo um laranja para assinar. Tudo se faz, claro,
sob o manto protetor da liberdade de imprensa!
J. Carlos de Assis é economista e
professor, presidente do Intersul, autor, junto com o físico-matemático Francisco
Antonio Doria, do recém-lançado O universo neoliberal em desencanto, pela editora
Civilização Brasileira. Esta coluna é publicada também no site Rumos do Brasil e, às terças, no jornal carioca Monitor Mercantil.
*Limpinhoecheiroso
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