Veja mente, mente, mente; descaradamente, mente!
Ética jornalística: uma reflexão permanente
Eurípedes Alcântara, Diretor de Redação de VEJA
“A ética do jornalista não pode variar conforme a ética da fonte que está lhe dando informações. Entrevistar o papa não nos faz santos. Ter um corrupto como informante não nos corrompe.”
VEJA nunca permitiu que suas páginas fossem usadas para outro fim que
não a busca do interesse público. Sempre que uma denúncia é publicada,
alguém ganha e alguém perde. Um ministro cai e outro ministro sobe. Um
grupo político é prejudicado e outro grupo político é beneficiado. São
consequências normais da divulgação de fatos verdadeiros. Em nosso
trabalho cotidiano, essas circunstâncias são tão naturais para nós que
nos dispensamos de discuti-las. Mas temos de concordar que as pessoas
não diretamente envolvidas em nosso trabalho possam, de boa-fé, não
entender completamente a natureza do bom jornalismo que praticamos em
VEJA. Refleti sobre nossos critérios, nossas relações com as fontes de
informação, enfim, nossa missão jornalística. O resultado é o texto
abaixo.
O jornalismo é feito com fontes de informação. O jornalista não é pago
para saber. É pago para descobrir. Por essa razão, as relações do
jornalista com suas fontes merecem uma reflexão permanente. Os
profissionais de VEJA seguem as regras escritas da Editora Abril, cujo
Código de Conduta estabelece: “O jornalista da Abril não tem relação de
trabalho com, nem presta serviço, ainda que eventual, para qualquer
pessoa, empresa ou entidade que seja, ou possa a vir a ser, fonte de
informação. A Abril jamais paga entrevistados por informação de nenhuma
espécie, de forma direta ou indireta. Sempre que possível, o jornalista
deve pagar por almoços e jantares com fontes ou seus representantes.
Cabe ao profissional e a sua chefia imediata definir as situações em que
a aplicação desta regra pode afetar o relacionamento com a fonte.”
Posturas Éticas – Guia para Jornalistas e Produtores de Conteúdo do
Grupo Abril – Complemento do Código de Conduta.”
Em complemento ao Código de Conduta da Abril, a redação de VEJA em seu
Plano Editorial anual reafirma que a “independência” é o maior valor de
um jornalista da revista. Por independência, diz o Plano Editorial,
entende-se que o repórter não aceita nenhuma barganha editorial com as
fontes em troca de informações. Em nosso cotidiano, embora seja uma
regra não escrita, sempre avaliamos as informações que recebemos das
fontes tendo como único metro o interesse público que se confunde com o
interesse jornalístico. Isso significa que as inúmeras informações
pitorescas ou de caráter pessoal, comportamental ou sexual de
autoridades e governantes que nos chegam na forma de fotos, vídeos e
gravações nunca são usadas por serem ofensivas e nada ajudarem na
compreensão dos fatos públicos.
“O ensinamento para o bom jornalismo é claro: maus cidadãos podem, em muitos casos, ser portadores de boas informações.”
Os jornalistas de VEJA estabelecem com suas fontes uma relação em que
fica claro desde o primeiro momento que não se trata de uma relação de
troca. A fonte não terá nenhum outro privilégio por fornecer
informações, a não ser a manutenção do sigilo, caso isso seja do
interesse dela. As fontes nunca são desinteressadas das reportagens com
as quais colaboram fornecendo informações. Um corrupto que passa
informações quer se vingar de outro corrupto ou espera atrapalhar o
negócio do concorrente com o governo. Nos dois casos, o jornalista
precisa ter noção exata do interesse da fonte e usar a informação quando
e somente se a vinda dela à luz servir mais ao interesse público do que
ao do próprio informante. Um assassino que revela na cadeia um plano
para assassinar o presidente da República é possuidor de uma informação
de interesse público – e pelo mecanismo da delação premiada ele pode ter
sua pena atenuada ao dar uma informação que impeça um crime ainda pior
do que o cometido por ele. Portanto, temos aqui uma situação em que a
informação é de qualidade e o informante não, por ser um assassino. O
ensinamento para o bom jornalismo é claro: maus cidadãos podem, em
muitos casos, ser portadores de boas informações.
“Uma informação de qualidade é verificável, relevante, tem interesse público e coíbe a ação de corruptos.”
O repórter que se preza não despreza uma fonte de informação sobre casos
de corrupção com base apenas no fato de que o informante é corrupto.
Mas como se cativa e se mantém um informante desse tipo sem acenar com
alguma vantagem para ele? O jornalista, consciente dos interesses
subalternos do informante, deve tentar obter dele o que for relevante
para o interesse público – e publicar. O mais provável é que o
informante se sentirá gratificado por ter conseguido o objetivo de ver a
informação tornada pública e o jornalista também terá cumprido sua
missão de trazer à luz fatos que, de outra forma, nunca sofreriam o
efeito detergente dos raios solares. Ao jornalista cabe distinguir:
A) se a informação é verificável;
B) se a informação é relevante e de interesse público;
C) se a vinda da informação a público ajudará a diminuir o escopo de ações dos corruptos, entre eles o próprio informante.
Cumpridas as três condições acima, a informação merece ser levada a
sério, a despeito, repita-se, da estatura moral do informante.
O bom jornalista não se deixa paralisar estabelecendo como critério só
ter como fontes pessoas que passem pelo crivo ético mais elevado. Isso
não deve ser confundido de jeito nenhum com a ideia de que vale tudo. O
critério de VEJA é claro. As informações precisam ser qualificadas,
independentemente da estatura moral do informante. Pessoas de estatura
moral questionável podem deter informações de altíssimo padrão de
qualidade jornalística. Digamos que a informação trate de uma negociação
de pagamento de propina. Quem tem mais condições de contar o que
aconteceu? Quem estava lá ou quem não estava lá? A resposta é clara:
quem estava lá, ou seja, um dos envolvidos.
Evidentemente, o critério acima não vale para fontes que queiram dar
opiniões. Não abrimos espaço para pessoas de baixo padrão moral dar
opiniões. No processo de coleta de opiniões, procuramos as mais
qualificadas autoridades mundiais para entrevistar, onde quer que
estejam. Se uma fonte moralmente discutível testemunhou um fato
importante, quer contar o que presenciou e se o que ela narra é
verificável por outros meios, consideramos que ela pode ter uma
informação que vale a pena ser levada em conta. Se essa mesma fonte
quiser dar uma opinião a respeito daqueles mesmos fatos, não aceitamos. A
qualidade da informação pode independer da qualidade da fonte. Já a
opinião é indissociável de quem a emite. A qualidade de quem opina afeta
a qualidade da opinião.
“A ética do jornalista não pode variar conforme a ética da fonte que está lhe dando informações. Entrevistar o papa não nos faz santos. Ter um corrupto como informante não nos corrompe.”
Esse ponto merece uma análise mais detida. Como o jornalista deve
diferenciar sua relação quando uma fonte é, digamos, um economista
respeitado e outra fonte é um criminoso? O jornalista deve ter em mente
que ambos podem ser detentores de informações da melhor qualidade. O
criminoso pode ter sido testemunha de um crime e seu depoimento pode
ajudar a desbaratar uma quadrilha perigosa. Não se pode desprezar o que
ele tem a dizer. É preciso ouvir, analisar, pesar, checar,
contextualizar. Um economista respeitado, caricaturando, pode estar
teoricamente equivocado sobre algum fenômeno ou pode estar a serviço de
algum especial interesse econômico ou comercial. Enfim, ambos valem pelo
teor, qualidade e grau de interesse da informação verdadeira de que são
detentores. É preciso atentar para o fato de que, mesmo que a fonte
seja um assassino esperando a execução de uma sentença de morte (exemplo
verídico transformando no livro O Jornalista e o Assassino pela
americana Janet Malcolm), ela merece ser tratada com respeito. Se a
fonte não tem ética, isso é problema dela. A ética do jornalista não
pode variar conforme a ética da fonte que está lhe dando informações.
Entrevistar o papa não nos faz santos. Ter um corrupto como informante
não nos corrompe.
Quando o jornalista lida com uma fonte que tem uma informação
verdadeira, verificável e relevante, ele precisa ter consciência dos
interesses particulares do informante. Deve avaliar se o interesse
público maior supera mesmo o subproduto indesejável de satisfazer o
interesse menor e subalterno da fonte. Se o resultado for positivo, a
informação se candidata a ser publicada. Por isso, o jornalista não pode
ser amigo de fontes. Não pode aceitar presentes, convites para viagens
ou quaisquer outros agrados.
VEJA nunca publicou conteúdos de gravações obtidas ilegalmente, portanto
o que segue aqui tem o objetivo apenas de refletir sobre certos
limites. Quem se favorece conscientemente do produto de furtos, roubos
ou outros crimes é potencialmente cúmplice do autor. Por essa razão, o
jornalista que eventualmente receber uma gravação obtida ilegalmente e
usá-la em uma reportagem pode estar se expondo aos rigores da lei. Desse
modo, ele só deve dar esse passo arriscado quando o custo para a
sociedade de desprezar o conteúdo da gravação for muito grande. Se o
preço pessoal de evitar um crime ou uma sequência de crimes dando
publicidade a gravações ilegais for incorrer em uma transgressão menor, o
jornalista tem o dever de considerar correr esse risco. Em VEJA, casos
assim jamais são decididos individualmente por um jornalista, mas pela
direção da revista. O trabalho jornalístico envolve vários riscos. Como
qualquer trabalho. Do cirurgião, do advogado. Do engenheiro. Se ele
tomar todos os cuidados, os riscos serão minimizados, mas jamais
eliminados. A primeira preocupação de VEJA ao ter acesso a uma
informação é entender como a informação foi obtida.
Se a publicação do produto do crime tiver relevância para evitar crimes
piores, e mesmo que isso ajude a vender revistas, não se incorre em
falha ética. Se um jornalista furtar da pasta de uma pessoa, por
exemplo, um plano para explodir a represa de Itaipu e se com a
publicação do plano ele evitar o ataque terrorista - e ainda vender mais
revistas –, a implicação ética lhe será altamente favorável.
“O bom jornalismo é uma atividade de informação mediada. O jornalista não é um mero repassador de declarações. Ele tem o poder discricionário de não publicar uma acusação ou uma ofensa grave.”
As informações obtidas com a garantia de manter o sigilo da fonte trazem
desafios adicionais ao jornalista. As informações obtidas de fontes
anônimas, que não podem ou não querem se identificar, devem ser usadas
preferencialmente como confirmação de dados ou relatos já obtidos de
outras fontes. Mas é um erro desprezá-las. Muitas vezes um informante
testemunhou fatos relevantes e a única condição que coloca para
narrá-los é a manutenção do sigilo sobre sua identidade. A regra básica
para errar menos com o uso de fontes anônimas é ter em mente que o
leitor pouco ou nada saberá sobre quem deu a informação, portanto o
jornalista tem de saber tudo sobre a fonte. VEJA muitas vezes não tem
meios de confirmar com outras fontes as informações passadas por uma
fonte que pediu OFF. Digamos que uma discussão entre duas pessoas seja
contada em OFF por um dos participantes. VEJA não vai publicá-la se a
outra pessoa não confirmar? Talvez sim, talvez não. Depende do conteúdo
do diálogo passado. A lição é a de que o bom jornalismo é uma atividade
de informação mediada. O jornalista não é um mero repassador de
declarações. Ele tem o poder discricionário de não publicar uma acusação
ou uma ofensa grave. Se o custo de não publicar for prejudicial ao
interesse público, o jornalista deve pesar os riscos e corrê-los se
necessário.
Uma fita contendo revelações importantes (depois de devidamente
periciada e contextualizada) tem valor extraordinariamente maior do que
uma frase acusatória, seja em OFF ou em ON. VEJA sempre pericia os
diálogos gravados que publicou e guarda esses registros. VEJA já
publicou diálogos que lhe foram entregues degravados sem ter tido acesso
ao conteúdo original – mas o fez com absoluta segurança da origem do
material. Existe uma diferença grande entre uma acusação em OFF e uma
fita. A fita, muitas vezes, envolve um diálogo de duas pessoas acusando
uma terceira – que pode ser inocente. E ela acaba sendo envolvida num
escândalo involuntariamente. Isso raramente acontece na acusação, ainda
que em OFF. Por isso, todo o cuidado é pouco com esse tipo de
informação.
O documento (depois de periciado e contextualizado) tem valor
exponencialmente maior do que uma informação oral, desde que o conteúdo
de ambos seja equivalente em relevância. Mas às vezes um documento mente
e a informação falada tem mais valor. Exemplo: como forma de mostrar
seu distanciamento de uma denúncia de corrupção, o ministro envia um
memorando cobrando de seu assessor informações sobre a irregularidade.
Esse documento pode ser apresentado pela autoridade como prova de sua
inocência. Uma apuração mais aprofundada pode provar que aquele
documento não passava de uma armação. Ou seja, cada caso é um caso.
“A regra para lidar com gravações ilegais que registraram atividades de cidadãos ou empresas privadas em seus negócios particulares é: descartar sem ouvir ou assistir – ou, alternativamente, entregá-las às autoridades.”
A fita (periciada, contextualizada) tem muito valor. A perícia ajuda a
mostrar se a fita chegou à redação em condições de ser usada como prova.
Às vezes, as gravações são inaudíveis ou indecifráveis – ou a fita pode
ter sido adulterada com o propósito de mudar o sentido das falas.
Nesses casos, ela vai para o lixo.
É crucial enfatizar um ponto da mais alta importância. O que se discute
aqui é a publicação de informações que dizem respeito à atuação de
autoridades e suas relações com terceiros quando tratam de questões que
envolvem dinheiro ou outros bens públicos. A regra para lidar com
gravações ilegais que registraram atividades de cidadãos ou empresas
privadas em seus negócios particulares é: descartar sem ouvir ou
assistir – ou, alternativamente, entregá-las às autoridades.
“As informações são tratadas em VEJA como portas que se abrem para a obtenção de novas informações. Todas elas são checadas.”
Nenhuma reportagem de VEJA – com a exceção óbvia da entrevista das
Páginas Amarelas – é feita com base em apenas uma única fonte de
informação. As informações são tratadas em VEJA como portas que se abrem
para a obtenção de novas informações. Todas elas são checadas,
contextualizadas e comparadas, de modo que os eventuais erros que possam
ocorrer sejam aqueles que conseguiram escapar de nossos rigorosos
mecanismos de filtragem – e nunca resultado de má-fé.
São Paulo, 20 de abril de 2012
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